opinião

O JUDAS

29 de maio de 2020

 

Igor Ramalho 

Nunca fui de briga. Ao contrário: fiz parte do “deixa-disso”, entrava em confusão só para apartar. Nas vezes em que me juntei para espancar alguém, a vítima foi sempre a mesma: o boneco do Judas.

Lembrando-me de como acontecia, acho engraçado. Esperávamos o Sábado de Aleluia com sangue nos olhos, e, durante a tarde, confeccionando o futuro agredido, à medida que ele ia ganhando forma ia também sendo alertado: “Mais tarde tu não escapa não, safado!”, “Vai morreu no pau pra nunca mais trair Jesus…”, dizíamos, ansiosos.

Certa vez, o poste em que penduramos o boneco não foi bem escolhido, ficava em frente à casa de um casal de idosos. Com a algazarra de mais de 20 meninos à porta, a polícia foi acionada: “Estão aqui fazendo baderna, jogando pedras em meu portão…” Da parte da baderna eu me lembro; sobre as pedras, não.

Eis que uma viatura dobra a esquina. Todos nós, receosos porque fazíamos barulho, nos sentamos na calçada, ficando quietos. Os PMs pararam bem à nossa frente, desceram, foram até o boneco e, de um só puxão pela perna, arrancaram-no do poste. O Judas se espatifou no chão. “Eiii!”, gritou um. Sem se importar, um soldado abriu o porta-malas do Santana e o jogou lá dentro, tal qual um saco de batatas. Saíram em arrancada, com destino ignorado. Perplexos, indignados, todos nos olhávamos: “Caralho, prenderam o Judas!”

Meu pai era promotor de justiça, e, por conta do trabalho, conhecia muita gente. Quando soube do episódio, ligou para algumas delegacias. Na terceira tentativa, descobriu onde fora para o detido: “Ramalho, boa noite, realmente deixaram um boneco aqui, está no chão da delegacia. É da rua do senhor?” “É sim, as crianças estavam brincando e, por um mal-entendido, a PM passou e levou…”

Nunca vou me esquecer da cena do retorno… O Judas, que fora jogado às profundezas de um porta-malas, agora voltava sentado no aconchegante banco da viatura. O soldado, libertando-o da prisão ilegal, ainda nos perguntou: “Querem que eu amarre ele lá de novo?” Não foi preciso, nós não quisemos. Dado o constrangimento passado, naquele ano específico poupamos o Judas do linchamento, transformando-o em mascote da turma.

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3 Comentários

  • Reply Jordana Tavares 29 de maio de 2020 at 16:45

    Belo texto!

  • Reply PROFESSOR XAVIER 29 de maio de 2020 at 18:59

    Para ser um belo texto, precisava dizer o nome da cidade, bairro e endereço do ocorrido. Aí sim, o conto estaria perfeito.

    • Reply Igor Ramalho 31 de maio de 2020 at 17:17

      Obrigado pelo comentário, professor. Não costumo citar locais ou datas em meus textos, por opção mesmo, mas vou considerar sua observação. Um abraço.

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