opinião

A festa e a pandemia

4 de agosto de 2020

 

Frutuoso Chaves

Os 435 anos de João Pessoa, a cidade, ocorrem, neste agosto, sem os carrosséis, os bazares e os pavilhões da Festa das Neves. E pensar que isso já foi tão esperado por gerações sucessivas.

O fato é que, à exceção do carnaval, o transcurso do tempo tem sepultado tradições populares a exemplo dos festejos de ruas, aqui e nas demais cidades brasileiras de médio e grande portes. Os parques e tendas não mais cabem, por dias a fio, sem grande inconveniência, nas áreas de comércio e de trânsito pesado. É o que há muito já assinalavam os jornais de papel, eles também, em processo de extinção.

Festas como a das Neves viraram um caso sempre mais agudo de amor e ódio. Sobretudo, na João Pessoa que agora aniversaria sem o brinde de iniciativas capazes do desafogo das artérias centrais, ou periféricas, cada vez mais congestionadas. A pandemia, em escala nacional, talvez lhes seja, agora, o tiro de misericórdia.

A das Neves é secular. Quando conheceu a capital da Paraíba, nos idos de 1830, Daniel Parish Kidder não gostou do que via. Pastor nascido em Darien, Estado de Nova Iorque, chegara em missão de propaganda da “American Bible Society”. Depois, produziu o livro “Reminiscências de Viagens e Permanências nas Províncias do Norte do Brasil”, de largo consumo por historiadores tupiniquins.

A má impressão começou em Tambaú, onde ele  desceu da balsa que o trouxera do Recife e onde fez contato com meninos que o ajudariam a carregar a bagagem, por entre a mata, até a chácara do inglês Rogers, de quem um dos bairros mais centrais da cidade iria tomar o nome.

Na conversa com os garotos informou-se de que eles não sabiam ler nem escrever, apesar do estudo numa escola instalada no Palácio. E lastimou “a incompreensível indiferença pela instrução que o governo ministra a seus súditos”. A não ser pela paisagem descortinada da casa do anfitrião e que o fazia lembrar “as planícies ao poente do rio Genesee, quando vistas do West Avon”, nada mais parecia agradar o visitante. Nem a cidade com seu atraso e, menos ainda, a sua Festa.

Anotou: “Grandes fogueiras ardiam em vários pontos do pátio da Igreja. Terminada a novena, todo povo acorria ao campo para apreciar os fogos que se queimavam até depois da meia-noite. Os que tivemos a oportunidade de ver eram muito mal feitos. Mesmo assim, o povo se pasmava e aplaudia freneticamente”.

Daniel Kidder, protestante e racista, torcia, então, o nariz: “Se se tratasse de divertimento para africanos ignorantes seriam mais compreensíveis essas funções. Mas, como parte de festejos celebrados com a presença de padres e do povo, temos de confessar que nos chocaram bastante”.

Seja em que tempo for, alguém só revela de público impressão tão ruim sobre um lugar, seu povo e seus costumes se estiver resolvido a nele não mais botar os pés, mesmo que seja para vender bíblias. E o pastor, de fato, aqui não mais veio.

A tempo: a pandemia também impõe limites à programação religiosa da Festa das Neves, iniciada no último dia 26 com o controle do número de fiéis católicos nas missas do Novenário. Tempos bicudos, estes que vivemos. (Na ilustração, matéria sobre os 400 anos de João Pessoa que produzi, em agosto de 1995, para a Capa do Caderno de Turismo do Jornal O GLOBO).

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1 Comentário

  • Reply José 5 de agosto de 2020 at 11:22

    A data correta da matéria de O Globo deve ser agosto de 1985.

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