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A minha infância cada vez mais magra

5 de junho de 2021

Havia a Rua do Cancão e, por detrás dela, uma ruazinha  apelidada de “Escorregou, tá dentro”. Estreita, de casas pequenas e ligadas umas as outras, via como paisagem os fundos das boas casas do bairro. Nem carro passava, de tão estreita.

Nela eu ia com frequência, atraído pelos gibis de Tarzan colecionados pelo jovem Dodô, igual a mim um leitor voraz das aventuras do homem das selvas.

Os passos do menino já andavam em ritmo decorado, saíam da casa da frente e, furando o paredão do muro, corriam ao endereço do amigo para reviver, com ele, as aventuras do homem que matava gente e bicho, que usando uma faca e os músculos derrotava crocodilos, onças e outros seres africanos.

A gente cresce e as convivências nem sempre perduram.

Dodô se manteve fiel às origens. Virou fotógrafo sem sair das paisagens da nossa infância, criou asas pra voar sem nunca aceitar mudar de céu. Eu corri em busca de outros cartões postais, fui ver o mundo que Dodô não conheceu, me fiz asfalto, trocando pela pista negra as pedras irregulares da minha infância.

Coisas da vida. Coisas do tempo.

Somente hoje, tanto tempo depois, tive notícias de Dodô. Ele foi anunciado como morto pela Covid. Lutou bravamente e perdeu. E eu recebi a notícia com o pesar de quem perdeu mais um pedaço do seu viver.

E como perdi pedaços!

Não sei se Dodô preservou sua coleção de gibis de Tarzan. Gostaria de saber. E de “herdar”, comprando, é claro. Seria uma forma de acreditar no passado, de preservar a certeza de que tudo passa, mas nem tudo.

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7 Comentários

  • Reply Wergniaud Antonio Breckenfeld Alexandre 5 de junho de 2021 at 12:52

    Parabéns pelo belo texto poético, carregado de sentimentos e de saudades de um amigo que o maldito vírus transportou para os céus.

  • Reply Wellington Farias 5 de junho de 2021 at 13:04

    Texto do coalho.

  • Reply Paulo Fernando Menezes Almeida 5 de junho de 2021 at 17:55

    Belo texto! Amigo! Narrativa dos tempos de criança espetacular, me faz lembrar Zé Lins, contando as histórias de “menino de engenho” e ” meus verdes anos”. Parabéns.

  • Reply ivana 6 de junho de 2021 at 08:31

    Lindo texto!! Linda homenagem!!

  • Reply Havane 6 de junho de 2021 at 10:23

    Ê meu avô, quantas crianças o senhor fez feliz…
    E só nos resta viver com esse vazio que o senhor deixou

  • Reply Luzia dos Santos Gonzaga 6 de junho de 2021 at 10:27

    Parabéns pela bela história do meu tio dodô, realmente ele era um gênio da risada, do bom humor, e acima de tudo encantava todos por onde andava.

  • Reply Paulo Sérgio Lyra 6 de junho de 2021 at 12:08

    Prezado Tião, quando você quer escrever, é insuperável. Hoje, por exemplo, deu um show. Belo texto, meus parabéns.

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