opinião

A REPÓRTER, O POETA E O ADVOGADO

12 de novembro de 2023

Por GILBERTO CARNEIRO

O NAVIO a vapor partiu de Portugal rumo ao Brasil trazendo entre os passageiros a primeira repórter portuguesa decidida a exercer seu ofício em nossas terras. No dia 20 de dezembro de 1912, VIRGINIA QUARESMA, então com 29 anos, aportou em solo brasileiro para tornar-se a primeira mulher no Brasil a frequentar as salas das redações como repórter e jornalista da “Gazeta de Notícias”, depois de atravessar o Atlântico, fato por si só ousado e corajoso, pois sua viagem ocorreu sete meses após o Titanic afundar.

Em Portugal ganhou notoriedade como a primeira mulher a fazer uma reportagem. Designada por um jornal de Lisboa para produzir uma matéria sobre a morte do Duque de Palmela, a forma inusitada que encontrou para obter informações foi se postar na frente da residência do Duque à espera de uma oportunidade para adentrar no recinto. Ao ver um séquito de freiras em direção ao ducado apresentou-se passando como pessoa próxima da família e lá dentro todos a deixaram à vontade achando que era amiga das madres. Ajoelhada durante mais de 2 horas ouviu todas as conversas e presenciou as brigas dos membros da família em torno do processo político para sucessão do Duque, dando um furo de reportagem que a tornou conhecida em toda a Europa.

Ao chegar ao Brasil foi logo contratada pelo “Gazeta” e designada para cobrir um assassinato cujo autor era um conhecido poeta, João Pereira Barreto, um sergipano que residia em Niterói. O trovador havia ficado viúvo e contraído novas núpcias com uma jovem de 28 anos, de nome Anita. O novo casamento não o fez bem e tomou gosto pela bebida. A missão da repórter era investigar por qual razão em uma fatídica noite o poeta havia enchido a cara em um bar no centro do Rio, bebendo com um amigo, um outro Barreto, o escritor Lima Barreto, autor de “Triste Fim de Policarpo Quaresma”. Naquela noite João Barreto bradava para o seu amigo de boteco: – “hoje eu posso matar alguém”.

Por volta da meia noite despediu-se do amigo, pegou a balsa com destino a Niterói e ao chegar em sua casa na noite de 3 de dezembro de 1912 assassinou à sangue frio a jovem mulher. Após o fato foi à casa do cunhado Silvio Romero, escritor pernambucano e comunicou-o do ocorrido, evadindo-se para lugar incerto e não sabido permanecendo por mais de seis meses foragido. O feminicídio ficou conhecido como “a tragédia de Icaraí”.

Enquanto isso seus advogados inventaram uma estória mirabolante para justificar o bárbaro homicídio. Como não havia desonra à vítima, uma mulher de reputação ilibada, construíram uma estratégia de defesa baseada no fato de que o assassino, réu confesso, havia matado a esposa sob os efeitos de hipnose, suposta magia praticada por uma amante que queria destruir a família do poeta.

A jornalista, que desenvolveu um trabalho investigativo muito mais eficiente que o da polícia, provou que não havia nenhuma amante e identificou testemunhas que depuseram em juízo afirmando que o assassino havia dito em alto e bom som que mataria uma pessoa naquela noite, inclusive seu amigo escritor, o Lima Barreto e o próprio cunhado do agressor. O réu foi condenado a 21 anos.

Foi então que o acusado resolveu constituir um novo advogado que, estrategicamente, aguardou a repórter feminista voltar para Portugal para leva-lo a um novo júri, desta feita com uma nova estratégia de defesa, um ardil que consistiu em atacar o próprio caráter do acusado, sustentando para o júri que o homicida era um bêbado, um degenerado, um ciumento compulsivo, porém a culpa não era dele, mas sim do seu sangue, afinal era um “negro”. A estratégia baseada numa ciência eugenista e racista talvez não funcionasse em tempos atuais, mas lembre-se, caro leitor, o fato aconteceu em 1910, e naquela época o conceito era esse mesmo, que o “negro” era uma pessoa degenerada. Assim, o que considerava torpeza do assassino foi utilizada para beneficiá-lo. O resultado do novo julgamento foi a absolvição.

 

O novo advogado mega famoso que conseguiu absolver o réu era simplesmente Evaristo de Morais, ironicamente o pai do Evaristo de Morais Filho, advogado que ficou famoso na década de 70 atuando como assistente da acusação no julgamento do empresário Doca Street, assassino da sua namorada, a socialite Angela Diniz, com três tiros no rosto. No primeiro julgamento o réu foi absolvido, porém após a família contratar o ilustre advogado, Evaristo de Morais Filho, para atuar como assistente da acusação, Doca Street foi condenado. O filho, advogado, foi mais homem que o pai, também advogado.

 

Virginia Quaresma voltou para Portugal e morreu em 1973 com sérias dificuldades financeiras. O questionamento que se faz é por qual razão uma mulher com uma postura vanguardista responsável por furos que marcaram a história do jornalismo investigativo em terras lusitanas e brasileiras morreu no ostracismo? A resposta está na estrutura machista do próprio Jornalismo. Virginia Quaresma era lésbica, vestia-se como homem, não assinava suas matérias e os créditos dos seus furos eram todos para “o Jornal”, nada para sua pessoa.

 

Renunciar ao reconhecimento do seu trabalho e agir como homem dentro das redações foi a forma que encontrou para tornar-se a primeira mulher a exercer em Portugal e no Brasil a profissão de repórter jornalista investigativa, circunstâncias que a obrigaram “permitir” a exploração e usurpação do seu trabalho pelos homens do poder da mídia da época.

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