Memórias

AS MEIZINHAS DOS CANGACEIROS

31 de julho de 2020

Na falta de médico, Lampião representava o cirurgião, clínico, ginecologista, parteiro e até dentista do bando.

E como não havia farmácia na caatinga, usava-se o chamado remédio caseiro.

Os dentes podres eram extraídos com pontas de punhais e alicates. Após as extrações, fazia-se bochechos de mandacaru. E o creme dental era raspa de juá, que evitava o aumento da cárie.

Lampião, Zé Baiano, Labareda e Virgínio eram os cirurgiões do cangaço.

Dadá de Corisco curou ferimentos graves do marido usando farinha e cachaça.

Em fevereiro de 1939, nas proximidades da fazenda Lagoa da serra-SE, Corisco foi atingido por uma bala que atravessou o braço direito e logo após o esquerdo, resultando em fraturas expostas e grande hemorragia. Passado algum tempo,  começou a apresentar braços arroxeados pelos hematomas, edema e perda de consciência. Dadá aplicou-lhe uma mistura de pó de fumo nas feridas para aliviar a dor. Posteriormente formou-se um abscesso na área lesada e Dadá fez uso de um emplasto com farinha de mandioca e quando o pus superficializou procedeu a drenagem .

A farinha de mandioca quente funcionava como um vaso dilatador local, possibilitando uma maior irrigação sanguínea e chegada de células de defesa que ao liberar moduladores químicos contribuiriam para a resolução do quadro. Depois Dadá flambou, na chama de uma vela, a lâmina de um canivete e fez uma incisão na altura do cotovelo esquerdo de corisco. A abundante secreção sanguinolenta vazou, o braço do cangaceiro ‘desinchou’ e o alívio da dor foi quase completo.

Lesões em abdome por arma de fogo ou arma branca, eram fechadas com agulha de costurar couro. A retirada dos projéteis era feita sem anestesia: “(…) Zé Sereno notou um ‘caroço’ no pescoço de Novo Tempo e perguntou: – Que caroço é esse no seu pescoço, cumpadi? Será a bala do Ontoím dos Pau Preto? (…) Nisso, botou a faca no fogo, derramou cachaça no gume, espremeu o ‘caroço’ entre o indicador e o polegar e deu pequeno talho: A bala pulou longe!

Os anais do cangaço registram ainda fatos curiosos. Os cangaceiros distinguiam, por exemplo, quando um ferimento era grave ao ponto de levar o ferido à morte. Quando um projétil de arma de fogo penetrava o abdome e o sangue saia de cor escura, significava gravidade, o que muitas vezes se confirmava pela morte do enfermo.

Outra prática curiosa utilizada para o prognóstico de lesões no abdome era cheirar a ferida; no caso de cheiro de fezes o prognostico era sombrio. Se os intestinos foram perfurados, tratava-se de preparar a rede para enterrar: fedeu a bosta, fede a defunto.

Segundo o ex-cangaceiro e escritor Joaquim Góis, Lampião e seus “cabras” traziam como parte integrante do seu “ carrego” uma botica improvisada com tintura de iodo, pó de Joannes, água forte, pomada de São Lázaro, linha e agulha, algodão, um estojo de perfumes com brilhantina, óleo extratos e essências baratas.

Em depoimentos fornecidos por Dadá, a cangaceira relatou que ao abraçar a profissão, os homens levavam “meizinhas” , plantas, misturas e alguns produtos como cachaça, álcool e água oxigenada. O emprego das cascas de jenipapo nas luxações, fraturas e contusões era uma prática comum. Em traumatismo ocasionado por coice de burro usavam um emplasto de mastruço, carvão moído e esterco de animal. O chá de quixabeira também era recomendado para cicatrização A raspa do pau de quixabeira era misturada com álcool ou cachaça e ingerida ou colocada sobre o ferimento; segundo os cangaceiros, a ingestão dessa mistura reanimava e dava uma sensação de força ao doente.

No ferimento à bala, aguardente, água oxigenada e pimenta malagueta seca eram introduzidos através do orifício de entrada. Segundo alguns sobreviventes, o tratamento era muito doloroso e mais angustiante do que a própria lesão.

Na vida errante do cangaço, a quantidade e qualidade da alimentação dependiam da situação: Quando perseguidos, se alimentavam às pressas, as colheres eram substituídas pelas mãos sujas em forma de concha, sem nenhuma higiene. Panelas de barro, latas e batatas de umbu eram utilizadas para cozinhar os alimentos, na maioria das vezes constituídos de carne seca de bode ou boi, rapadura e farinha. Quando nos “coitos” livres dos “macacos”, os cangaceiros se alimentavam fartamente, após as refeições descansavam, contavam os “ causos”e gargalhavam.

Meizinhas, amuletos e rezas eram utilizados para “fechar o corpo” contra os inimigos ou para espantar cobras e animais peçonhentos, além de recomendações no mínimo estranhas: dessa forma, mulher menstruada era impedida de entrar nos quartos dos feridos  de guerra, “para não arruinar a ferida”. O tratamento de doenças venéreas era feito com sumo de 12 limões bebido em jejum logo após o sol nascer. Não podia olhar para mato verde e nem para mulher; banho de rio nesses casos era proibido porque “ficava cego”, quando atingia os testículos ou em casos de “mula” (linfogranulomatose) o doente acocorava-se sobre o fogo.

Se a afecção fosse o tétano, o tabaréu se vestia de preto, ficava em um cômodo escuro e incomunicável. Em lesões graves, dentre outros cuidados o doente devia evitar “pisar em rastro de corno”.

No livro “Lampião, Cangaço e Nordeste”, a escritora Aglaê de Oliveira cita outros exemplos da farmacopéia cangaceira utilizada para o tratamento de enfermidades comuns nos bandos: Cefaléia: Folhas de algodão aquecidas e mascar o gengibre. Faringite: Chá de formiga e gargarejo com sal. Doenças reumáticas: Banha de capivara, chá de osso de jumento, carne de cascavel. Otites com leucorréia: Banha de traíra. Asma: Banha de ema. Constipação: Alecrim caseiro. Sinusite: Alecrim salobro. Diabetes: Jucá. Epistaxe: Cheirar algodão queimado. Otalgia: Tampões de folhas de algodão. Entorses e luxação: Emplastro de clara de ovo batida com breu e untar o local atingido com banha de ema. Mordedura de cobra: Queimava o local da picada imediatamente ou realizava um corte com faca afiada para escorrer o veneno. Halitose: Mastigar folhas da goiabeira branca. Hemorragia: Suco de arnica. Cardiopatias e lipotímia: Chá de quiabo. Epilepsia: Chá de perna de garça. Ascaridíase: Erva de cruz. Difteria: Banhos de sândalo e alcaçuz. Hidrocele e hérnia: Banha de baiacu.  Enterites: Chá de erva cidreira, sarpinanga. Escabiose: Raspa de côco misturada  com enxofre, passando 8 dias sem molhar. Verminoses: Lavagem de manipueira. Impotência sexual: Chá de velame, chá de cabeça de negro em jejum e água de arroz. À pimenta e ao caminho em jejum chamavam “mingau levanta homem”. Para suspender a menstruação: Semente de manjiroba em infusão. Infusão de grão e café na aguardente, durante 9 dias. Febre alta: Suador de semente de melancia e a casca de angico em água serenada. “Fraqueza dos pulmões”: Leite de jumenta pela manhã. Prisão de ventre: Chá de raiz da gitirana, retirada do nascente.

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1 Comentário

  • Reply José Francisco Ramalho 2 de agosto de 2020 at 11:29

    Matéria interessante, mostra,o convívio do indivíduo com as dificuldades buscado a solução para os males com o material disponível e a crença nos resultados.
    Os cangaceiros foram notáveis, tanto como fenomeno sociocultural e econômico, quanto por sua capacidade no enfrentamento das adversidades diárias e permanentes.

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