opinião

BOQUEIRÃO DA ONÇA

2 de junho de 2024

Por GILBERTO CARNEIRO
ACORDEI de sobressalto. O acordo era sairmos logo cedo para enfrentar a trilha fechada e podermos voltar em segurança. Apressados entramos na caminhoneta e seguimos rumo ao Campo Largo.
Terminada a estrada, de facão na mão, adentramos mata adentro abrindo caminho entre cipós e facheiros na caatinga, único bioma exclusivamente brasileiro que o coloca na condição de ser um patrimônio biológico que não pode ser encontrado em nenhum outro lugar do planeta.
Avançamos e, de repente, o alerta – “passou por aqui”, gesticulou meu amigo Robeilto, o Bel como o chamo, apontando para os rastros inconfundíveis sobre o carreiro. – “sinta o cheiro!”. O odor forte da urina era inconfundível. Ela havia passado por ali há menos de uma hora.
Entre a excitação e o medo pensei em recuar, mas não havia como, estávamos a poucos metros da Pedreira, local em que provavelmente lhe servia de abrigo. A coragem não era minha, peguei emprestada do meu amigo que repetia como um mantra: – “Ela não nos fará mal porque não faremos mal algum a Ela. É só respeitar esta lei da natureza e tudo correrá bem”.
Em meio ao agreste, entre camadas de pedras sobrepostas umas sobre as outras, alcançando uma altitude capaz de descortinar uma paisagem que literalmente nos faz embargar de emoção ao deslumbrar o Parque Nacional do Boqueirão da Onça, nos deparamos com um sítio arqueológico ainda não catalogado com inúmeras gravuras rupestres em cavernas existentes que nos dão a noção que os nossos antepassados estiveram por ali.
” – Estamos no habitat dela” – revelou meu amigo. Apreensivo, hesitei, afinal ela poderia surgir a qualquer tempo de uma das tocas que usa como dormitório. – ” Fique tranquilo. Sentiu nossa presença e se foi. Ela teme o Bicho Homem” – tranquilizou-me. Não sabia ao certo se a notícia me confortava ou me frustrava. Desejava muito vê-la.
Passei então a dar atenção às gravuras rupestres existentes nas rochas. Em uma delas há o formato inconfundível de um ventilador. Apresenta uma circunferência com várias hélices e uma base de apoio na parte inferior. Impressionado, analisava o desenho e olhava o entorno até a vista alcançar a cadeia de montanhas circundante, e sobre o topo as diversas torres eólicas com mais de 80 metros de altura que fazem girar suas pás gigantes captando energia por força da ação do vento, produzindo um barulho ensurdecedor assustando e desorientando os animais, fazendo nossa deslumbrante felídea se deslocar tão próxima à propriedade do meu amigo.
A constatação que sobressaiu sobre a análise das gravuras foi a capacidade de nossos antepassados perceberem o potencial do vento na região para gerar energia, mesmo que de forma involuntária, inscrevendo as gravuras como uma espécie de mensagem para as futuras gerações, num tempo em que os seus Deuses, nas suas crenças, eram poderosos na terra e controlavam o vento, a chuva, as colheitas, o nascimento e a morte.
Nossa geração absorveu este recado em relação ao potencial do vento e hoje na região do Parque Nacional do Boqueirão da Onça está instalado um dos maiores parques eólicos da América Latina, residindo neste fato uma preocupação genuína, que consiste na devastação que está sendo feita em decorrência da instalação das famigeradas torres, impactando de forma negativa a flora e a fauna da região.
A infraestrutura realizada pelas empresas responsáveis pela instalação dos parques eólicos e de fotovoltaica tem favorecido a região com estradas pavimentadas e asfaltadas e geração de emprego, porém os efeitos negativos também precisam ser revelados para ser combatidos. Inúmeras áreas foram bloqueadas para o acesso à população com cancelas instaladas e vigilância armada para impedir que os nativos transitem pelas estradas que foram feitas e que dariam acesso às suas propriedades. Os empregos existem, mas a população local fica com a rebarba, os serviços pesados, por falta de um programa de qualificação dos jovens da região.
Esta realidade não é um privilégio avesso da Bahia. Não se trata de ser contra estes investimentos, longe disso, mas que se respeitem o meio ambiente e os direitos de propriedade. Aqui na Paraíba, a exemplo da Serra de Santa Luzia e Serra da Borborema, foram instaladas usinas de energias renováveis que tem provocado o desmatamento da vegetação nativa em extensas áreas para a fixação de pás giratórias ou de células fotovoltaicas que tem causado a morte da biodiversidade.
E começam a surgir achaduras em paredes de casas e de cisternas causadas por explosões e pelo transporte por caminhões das gigantescas estruturas das usinas eólicas. Mas os problemas não páram por ai. Existem comunidades rurais muito afetadas pela fuga de famílias para a zona urbana por conta da instalação das usinas; também, os danos à saúde mental decorrentes do barulho das torres das usinas eólicas; o risco de dano a sítios arqueológicos e comprometimento da fauna, flora e nascente de rios até o esbulho das terras dos camponeses em algumas situações, além dos pagamentos irrisórios nas compras de terras ou arrendamentos, todos decorrentes da instalação de usinas geradoras de energia considerada ‘limpa’.
A Reserva aonde nossa simpática pintada reside é um patrimônio da nossa história em decorrência das várias gravuras rupestres, porém não houve nenhuma preocupação das empresas eólicas em catalogá-las para garantir a sua preservação.
Saímos de lá sem encontrarmos a majestosa pantera. Desorientada com o barulho das torres anda a ermo e é bem provável que dia, menos dia, tenha sua vida ceifada pelo calibre de um rifle nas mãos de um caçador desalmado que goste de ostentar na parede de casa a beleza da pele de uma onça-pintada.

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