O ex-assessor da Presidência da República Cleiton Henrique Holzschuk disse à Polícia Federal ter sido informado pelo tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid que as joias enviadas pela Arábia Saudita – e retidas na alfândega do Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos – iriam para o “acervo pessoal” do então presidente Jair Bolsonaro (PL).
Cid era braço direito de Bolsonaro – ele foi ajudante de ordens do ex-presidente. Cleiton, 2º tenente do Exército, era subordinado a Cid na Ajudância de Ordens do Gabinete Pessoal do Presidente da República.
O ex-assessor depôs à PF em 5 de abril, no inquérito que apura a tentativa do governo Bolsonaro de trazer sem declaração joias milionárias ao Brasil.
“Que (…) foi falado pelo tenente-coronel Cid durante as conversas de WhatsApp relatadas que as joias iriam para o acervo pessoal do presidente da República”, diz em um dos trechos do depoimento.
Cleiton disse aos policiais federais que conversou por WhatsApp com Cid sobre a liberação das joias entre os dias 28 e 29 de dezembro, nos últimos dias do governo Bolsonaro.
No depoimento, ele falou que não tinha cópias das mensagens porque as conversas ocorreram por meio do celular funcional, devolvido quando ele deixou o cargo.
Ao depor à PF, o tenente-coronel Mauro Cid não menciona a conversa com Cleiton. Cid disse que cabe ao Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH) determinar se um bem recebido irá para o acervo público ou privado do presidente.
Segundo ele, o então presidente lhe informou em dezembro de 2022 sobre a existência de um presente retido pela Receita Federal e pediu que checasse se era possível regularizar os itens.
De acordo com Cid, não houve ordem de recuperação do presente por parte do ex-presidente, mas sim uma solicitação.
Também à PF, no mesmo dia 5 de abril, Bolsonaro disse que “nunca decidia ou era consultado, ou mesmo opinou, quanto à classificação, entre o acervo público ou privado de interesse público”.
Busca das joias
Acionado por Cid, o tenente Cleiton escalou um auxiliar para ir buscar as joias no Aeroporto Internacional de Guarulhos. Era o sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva.
Cleiton também contatou a secretária da Ajudância de Ordens, a militar da Aeronáutica Priscilla Esteves das Chagas de Lima, para que ela adiantasse a preparação dos documentos necessários para concluir o trâmite de recebimento de um presente pelo presidente.
Priscilla, também em depoimento à PF, afirmou que preparou um ofício que tinha como objetivo informar a conclusão do processo em caso de sucesso da retirada do conjunto retido na Receita Federal.
O processo feito por Priscilla fugia do padrão e seria incluído no sistema federal antes mesmo que a União tivesse, oficialmente, acesso às joias (veja abaixo como funciona o processo).
Segundo ela, o ofício relatava que o “presente” havia sido transferido para a “posse do Presidente da República, como presente pessoal e não institucional”.
O blog de Valdo Cruz apurou que Priscilla Esteves recebeu ordens de superiores para pedir o registro das joias como parte dos bens do ex-presidente.
Na noite do dia 29 de dezembro, no entanto, após o fracasso da operação de retirada das joias da alfândega, Cleiton determinou, em um áudio atribuído a ele, que Priscilla apagasse o documento. Ouça abaixo.
Áudio mostra ordem de assessor de Bolsonaro para apagar ofício de classificação de joias
“Com relação àquele ofício que a gente fez hoje, sobre esses presentes do PR [Presidente da República], ainda bem que eu não assinei! Porque deu uma ‘zica’ lá e o Jairo [Jairo Moreira da Silva – sargento da Marinha] não conseguiu pegar esse material, tá certo?”, afirma a gravação.
A existência de uma gravação já tinha sido revelada pelo blog do Valdo Cruz. A TV Globo e o g1 tiveram acesso ao áudio na íntegra e à imagem da conversa no aplicativo de mensagens.
Jairo, que ele cita na mensagem, é o sargento da Marinha que foi enviado, mais cedo naquele 29 de dezembro, para retirar o conjunto milionário da alfândega do Aeroporto Internacional de Guarulhos.
Em outubro de 2021, os itens foram encontrados na mala de um assessor do Ministério de Minas e Energia e não foram declarados à Receita como item pessoal, o que obrigaria o pagamento de imposto. Por conta disso, acabaram retidos.
O conjunto valioso poderia ter entrado no Brasil sem o pagamento de imposto, desde que fosse declarado como presente para o Estado brasileiro, mas, neste caso, ficariam com a União.
A “zica” se refere ao fato de a tentativa de retirada das joias ter sido frustrada pela falta de um documento. Nos dias 28 e 29 de dezembro, o então chefe da Receita Federal pressionou servidores, inclusive por mensagens de áudio, para que o órgão liberasse as joias retidas.
O áudio segue:
“Então, ele [Jairo] tá voltando hoje à noite sem o material, beleza? Aí, na segunda-feira, a gente tem que ver aí como é que faz pra excluir aí o ofício, excluir a documentação que a gente fez com relação ao recebimento desse material, beleza?”.
Reprodução de tela de conversa de WhatsApp entre Priscilla Esteves e contato marcado como tenente Cleiton. — Foto: Reprodução
Operação às pressas para pegar as joias
A secretaria da Ajudância de Ordens Priscilla Esteves ainda contou à PF que decidiu providenciar o documento que depois foi excluído, antes mesmo da retirada das joias, por causa do “tempo exíguo de mudança de governo”. No formulário, ela escreveu: “os itens encontram-se com o Presidente da República”.
À PF, ela relatou ter sido informada mais cedo pelo tenente Cleiton que o ex-ministro de Minas e Energia havia recebido um “presente destinado ao Presidente da República, que ficou retido na Receita Federal de Guarulhos”.
A documentação preparada por ela seria incluída em um outro processo documental exigido para recebimento de presentes.
A operação feita às pressas, caso bem-sucedida, passaria por cima do protocolo correto, que envolve ainda outro órgão ligado à Presidência, o Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH) do Gabinete Pessoal do Presidente da República.
Segundo determinação do Tribunal de Contas da União, todo presente recebido por um presidente, inclusive os entregues por autoridades estrangeiras, devem ser considerados públicos, com exceção de itens de “natureza personalíssima ou de consumo direto”. E é o GADH que tem que registrar e classificar os itens.
O conjunto de joias que teria sido classificado como “presente pessoal” na documentação inclui um colar, um par de brincos, um anel e um relógio feminino cravejados de diamantes.
Imagens da conversa entre Esteves e o contato salvo como “coronel Cleiton” incluem uma foto dessas joias.
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