Memórias

Canhoto e Marrocos

8 de julho de 2020

Quando Canhoto parava o carro diante da casa de Dona Nadir, sua irmã, na Rua de São Roque, o povo fazia fila para vê-lo. Os seus amigos de infância iam abraçar o companheiro de velhas serenatas, para reviverem juntos os muitos rebuliços que promoveram nas ruas de Princesa. Os mais jovens queriam vê-lo e ouvi-lo tocar aquele violão atravessado, de onde tirava acordes divinais e solos mirabolantes.
Canhoto não descansava em Princesa. Só tocava. E tocava de casa em casa, a convite de A e de B, ora almoçando com Marçal Lima para tocar antes dos comes e durante os bebes, ora pegando a janta na casa de Zezito Sérgio, sempre levando na retaguarda os amigos e admiradores.
O interessante é que isso ele fazia com um prazer de menino quando vê cocada de leite diante dos olhos. O sorriso não saía daquele rosto redondo, bonachão e matuto. Era sorriso para mais do contrato. Nem parecia o famoso Canhoto da Paraíba, conhecido em terras distantes, amigo de cantores e compositores até mesmo do sul do país. Ali ele voltava a ser Chico Soares, o irmão de Jia, de Nadir, de Odon,tio de Chico, de João Cuscuz, jogador de peladas, tocador em sambas do mato, seresteiro dos bêbados e apaixonados, o Chico de Princesa, simples, rural, sertanejo.
Na última vez que tocou em Princesa, ele estava acompanhado de Manoel Marrocos, outro monstro da música, que, embora fosse menos famoso em termos de conhecimento além fronteiras, nunca foi menos talentoso.
Marrocos, o gigante do saxofone, ao lado de Chico Soares, o mágico das sete cordas. Estavam ali, lado a lado, na casa de Batinho, um improvisando e o outro acompanhando, depois improvisava o que acompanhara, sendo acompanhado pelo que improvisou primeiro. Terminados os improvisos, voltavam a tocar tudo de novo, lembrando os mínimos detalhes, como se na cabeça, em vez dos miolos dos seres humanos, tivessem câmeras fotográficas, computadores.
O repórter de A União visitava a terra natal e participou daquela farra. Fez matéria de página inteira, editada por Arlindo Almeida, com a manchete: “Marrocos e Canhoto – um sax que chora e um violão pra consolar”.
O violão de Canhoto só deixou de tocar quando um AVC, traiçoeiro e covarde, matou a banda onde fica pregada a mão esquerda. Ficou a saudade do seu tocar. Marrocos também aposentou o sax em razão da idade. Depois os dois partiram para mundos distantes e restou o vazio no espaço sem música do chapadão da Borborema, preenchido de vez em quando pelo uivo do fantasma da saudade ecoando acordes de um violão consolando um saxofone chorão.

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2 Comentários

  • Reply Joca Fernandes 9 de julho de 2020 at 10:52

    TIÃO, essa é uma ótima lembrança do tempo que tocavam no bar de Joca Fernandes e tú vinha homenagear com tua presença mais Paulo Mariano, tú lembra?

    • Reply Sebastião 9 de julho de 2020 at 15:15

      Claro, Joca. Vamos reabrir esse bar, homem!

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