Marcelo Torres
O morto segue os passos de Carlos.
Dia e noite é isso.
O morto aparece atrás de portas,
atrás de troncos, debaixo da cama,
lá em cima da amendoeira.
O morto aparece dentro do guarda-roupa
usando o terno de Carlos.
O morto se esconde no armário de Carlos.
O morto deita na gaveta do arquivo
de aço de Carlos.
Coitado de Carlos,
vai se olhar no espelho e vê
o morto atrás dos seus ombros.
Carlos senta no escritório,
e o morto atrás da cortina.
Carlos abre a cortina,
o morto o espia da janela.
Carlos não dá entrevista
porque sempre vê a caveira do morto.
Carlos rasga papéis e os atira no morto.
Os papéis somem no ar,
e o morto ri da cara de Carlos.
No restaurante, o morto fica atrás
da parede de vidro comendo
com os olhos a comida de Carlos.
Na cama, com a mulher,
Carlos deita de lado,
e o morto em pé à cabeceira.
Com as teúdas e manteúdas,
Carlos só deita por baixo,
que ele não é mais menino,
vê o morto no telhado,
doido pra pular em cima dele.
Para Carlos, o amor se refugiou
abaixo dos subterrâneos.
Ele diz que o ódio não existe.
Coitado de Carlos.
Estéril de abraços.
Carlos acredita é no medo.
Carlos tem medo, e não é pouco.
Carlos teve muito medo da mãe.
E mais medo ainda do pai.
Carlos tem medo da esquerda,
da direita, do centro.
Nem gauche na vida
nem tinta guache.
Carlos chega a setenta e oitenta
e não sabe o que é.
Só sabe é que tem medo.
Medo de ditadores e democratas.
Medo da máquina e dos mares
dos desertos e grandes sertões.
Carlos tem medo da polícia,
da pontifícia e da pudicícia.
Carlos tem medo dos homens presentes.
Carlos tem medo dos ausentes.
Especialmente agora de um
anjo torto
um morto
que ele mesmo matou.
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