RAMALHO LEITE
Quando eu “era uma criança pequena” lá em Borborema um dia de eleição era um dia de festa. Também de brigas e muitas discussões, logo esquecidas. Mas a estrutura montada para receber os eleitores, demandava recursos próprios e por isso, poucos tinham direito de pleitear votos. Somente a partir de 1974, com a Lei Etelvino Lins, que proibiu o fornecimento de transporte e comida aos eleitores, gente enxerida da minha qualidade pôde disputar um mandato de deputado. A lei do pernambucano, ex-ministro do TCU, senador e governador daquele estado colocou na responsabilidade da Justiça Eleitoral a organização do translado de eleitores da zona rural para a urbana onde se concentram a maioria das urnas. Alimentar eleitor virou crime eleitoral e, somente em casos excepcionais, a própria Justiça Eleitoral poderá fazê-lo.
Antes dos anos 1970, porém, a coisa funcionava de forma muito diferente. Vou contar o que me lembro. Em Bananeiras, UDN e depois a ARENA armavam um jiqui no armazém de fumo do Major Augusto e os eleitores enfileirados chegavam ao prato de comida. No braço recebiam uma marca de tinta, a exemplo do que fazem os palhaços com os meninos que os acompanham nas ruas, valendo o ingresso para o circo. A marca dos eleitores era para evitar que o “dito cujo” repetisse o prato. Mas antes de comer, tinham que mostrar o titulo para comprovar que já haviam votado.Na campanha de prefeito em 1963, Pedro Pessoa de Aguiar, o jovem que inventou oposição na Bananeiras redemocratizada, aludindo à marca gastronômica, pedia aos eleitores que não se deixassem “ferrar”, “como os bezerros de seu Mozart.” O deputado Clovis Bezerra e seu irmão Mozart investiam na estrutura do dia da eleição e a oposição somava votos sem gastar nada. “Comam lá e votem cá”, era a cantilena.
O deputado Clovis Bezerra distribuía dezenas de bois que seriam mortos e distribuídos na sede e nos distrito. Estes viraram cidades, mas o costume continuou. Meu pai, Arlindo Ramalho, era candidato a prefeito de Borborema e, de acordo com o eleitorado existente, tinha direito a três bovinos bem curtidos e ao aluguel de alguns veículos para o transporte de eleitores. Nada disso era fiscalizado. Não se prestava contas a ninguém. Era um acordo explícito entre o líder político e seus liderados. Quando matavam os bois, surgia outro problema: os bilhetes e os pedidos de quem se dizia enfermo e não poderia comer junto com os demais. “Minha carne eu mesmo preparo”, exigiam. Meu pai retalhava um dos bois com esses eleitores privilegiados. Os pacotes de carne eram embrulhados e enviados aos compadres e afilhados. Além disso, outras casas eram reservadas para a alimentação de algumas famílias “mais lordes”, que não queriam se misturar com a “plebe ignara”.
Sobre esses requintados eleitores, em uma reunião de véspera de eleição entre Clovis Bezerra, cabos eleitorais, motoristas transportadores e fiscais do dia da eleição, ele distribuía tarefas a alguns de seus correligionários. Olhou para o administrador do Engenho Caboclo, propriedade da família e orientou: – Compadre Ribeiro, as moças do Caboclo vão comer na sua casa. Seu Mica, um amigo do peito, resolveu ajudar: – Dr. Clovis, por que essas moças do Caboclo não já vêm comidas de lá? Foi uma risadagem geral.
O deputado Clovis Bezerra costumava visitar as cidades vizinhas no dia da eleição. Na casa do meu pai, onde estavam servindo refeições foi até o quintal. Abriu as panelas e resolveu orientar as cozinheiras. Pegou uma colher de pau e mexeu o seu conteúdo. Demorou-se na tarefa. – É assim que se faz, ensinou. Dionísio Pereira dos Santos, naquele ano o escalado pelo PSD para enfrentar meu pai nas urnas de Borborema, por cima do muro, testemunhou a aula de culinária do deputado. Quando perdeu a eleição, resumiu sua vindicta:
– Perdi a eleição mas obriguei o deputado a assar carne pros eleitores…
A cabine eleitoral era mesmo indevassável. No canto da parede, uma cortina encobria o sigilo do voto. As cédulas individuais eram depositadas nas urnas e o exercício do dia era a “troca de chapa”. Em uma eleição prometi ao deputado Silvio Porto que pelo menos meu irmão Antonio Carlos, depois promotor de justiça, votaria nele. Mas ele esqueceu e na hora de votar colocou na urna uma cédula de Clovis Bezerra. Quando descobri fui a procura de alguém para cumprir minha promessa.Só restou minha mãe, que não aceitou dar esse voto contra dr.Clovis. Ainda bem que alguns eleitores vieram de Guarabira e votaram em Silvio Porto.
Dia de eleição deixou de ser uma festa menos romântica quando surgiram os marqueteiros e com eles as pesquisas, a boca de urna e outras ações que passaram a exigir muito dinheiro. Melhor tivessem deixado o transporte e os bois. A exigência de muito dinheiro fez nascer a arrecadação espúria e, a partir daí… Acabou o meu espaço…
2 Comentários
Ramalho, o presidente Bolsonaro, com sua ardorosa defesa do voto impresso, mais gostaria de ver um retrocesso moldado nesse estilo de eleição bem conduzida pelos chefes políticos de um passado que não deixa saudades.
Parabens deputado, escrevendo cada vez melhor. Leio sua coluna todo domingo.