O Ministério Público Federal está conflagrado. O distúrbio resultou na produção de um manifesto de procuradores contra um projeto da procuradora-geral da República, Raquel Dodge. O documento acusa Dodge de propor mudança “radical e pouco debatida” na estrutura do órgão. Anota que a novidade “concentra nas mãos da cúpula da instituição um enorme poder”, criando “mecanismos de ingerência” que comprometem a “independência” dos procuradores. Alega-se no texto que a proposta de Dodge “permitirá a existência de procuradores da República biônicos”.
Idealizado no domingo e aberto a adesões num endereço fechado da internet desde a última segunda-feira, o “Manifesto em Defesa da Independência Funcional do Ministério Público Federal” atraiu apoios rapidamente. Na noite de terça-feira (12), 534 colegas de Raquel Dodge já haviam assinado a peça. Isso corresponde a quase metade dos 1.151 procuradores da ativa. A lista de subscritores inclui vários membros da Lava Jato. Entre eles dois coordenadores da operação: Deltan Dallagnol (Curitiba) e Thaméa Danelon (São Paulo). Inclui também um subprocurador-geral da República: Mario Luiz Bonsaglia. A íntegra do manifesto e os nomes dos subscritores estão disponíveis aqui.
Na proposta que incendeia a corporação, Raquel Dodge prevê a criação de “ofícios especializados de atuação concentrada em polos”. Seriam núcleos de procuradores selecionados para cuidar de “problemas crônicos ou de alta complexidade” em diferentes regiões do país. Para atuar nos casos tidos como prioritários, o procurador seria selecionado em processo conduzido “pela cúpula da instituição.” Permaneceria na unidade por um período de dois anos, renovável por mais dois. Para os opositores do projeto, esse modelo envenena a seleção e põe em risco a independência dos procuradores.
Diz o manifesto a certa altura: “Na configuração atual, em vigor desde a promulgação da Constituição de 1988, a definição do procurador responsável por cada investigação, o chamado ‘procurador natural’, observa critérios objetivos de distribuição previstos na lei e na própria Constituição. A finalidade de tais critérios é assegurar à sociedade transparência quanto à forma de escolha do procurador natural para cada caso, impedindo qualquer tipo de interferência em sua designação, seja da própria cúpula da instituição, seja de agentes externos, bem como garantir que não haverá intromissões indevidas tanto na instauração quanto no curso das investigações.”
O documento prossegue: “Escolhido de forma objetiva e protegido de interferências externas, tem-se um ambiente ideal para que o procurador da República responsável por cada investigação atue com independência, buscando apenas a fiel aplicação da lei. Esta, a chamada independência funcional, é a pedra angular do modelo de Ministério Público brasileiro, instituído pelo constituinte de 1988.”
No seu trecho mais ácido, o manifesto dos críticos de Dodge anota: “A radical e pouco debatida proposta da Exma. procuradora-geral da República concentra nas mãos da cúpula da instituição um enorme poder e pode vir a resultar, em algum momento, como efeito colateral deletério, na criação de mecanismos de ingerência, ainda que de forma indireta, sobre a atuação dos procuradores da República, em prejuízo de sua plena independência para atuar. Ainda que confeccionado com boas intenções, é preciso atenção para um projeto que, mesmo reflexamente, permitirá a existência de procuradores da República ‘biônicos’, o que em nada interessa à sociedade brasileira.”
A desavença sobre independência funcional adiciona tensão num ambiente já eletrificado por um debate salarial. Conforme já noticiado aqui, Raquel Dodge enfrenta um levante corporativo. Procuradores que integram grupos de trabalho e coordenações estaduais começaram a abandonar os cargos na última segunda-feira. Batem em retirada para forçar Dodge a criar uma gratificação por acúmulo de funções. Algo que compense a perda do auxílio moradia de R$ 4,3 mil mensais, extinto depois que o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, revogou as liminares que escoravam o benefício.
Até a noite de segunda-feira, pelo menos 34 procuradores haviam remetido à procuradora-geral pedidos de afastamento de cargos que ocupavam em grupos e coordenações sem nenhum tipo de tônico extra no contracheque. Muitos outros ofícios estão a caminho. Na véspera, enquanto um grupo de procuradores discutia os termos do manifesto em que acusam chefe do Ministério Público de tramar a criação de investigadores “biônicos”, Raquel Dodge enviou mensagem aos colegas. Nela, fez um “chamamento ao diálogo”. O problema é que seus colegas farejaram no timbre de Dodge um ânimo belicoso.
A procuradora-geral escreveu: “Devo zelar para que a exposição pública já desencadeada pelo extravasamento de pauta reivindicatória corporativa – reitero – de difícil compreensão por formadores de opinião e pela sociedade, não seja compreendida como ato contrário à lei, nem desproporcional ao justo, e muito menos indiferente à fase da vida nacional marcada por grandes tragédias evitáveis, por elevado deficit público e por milhões de desempregados e excluídos.”
Dois dias antes, na sexta-feira (8), Raquel Dodge tentara aprovar no Conselho Superior do Ministério Público, presidido por ela, a proposta sobre a criação dos grupos de procuradores para tratar dos “problemas crônicos ou de alta complexidade”. O projeto enfrentou resistências. Ao pressentir que o risco de rejeição era real, Dodge encerrou a sessão antes do almoço. E a encrenca não foi levada a voto.
Nesta terça-feira, a procuradora-geral comentou numa nota distribuída por sua assessoria o início da debandada dos procuradores lotados em grupos e coordenações. Disse que a gratificação reivindicada pelos colegas sublevados também depende do aval do Conselho Superior do Ministério Público Federal. E voltou a torcer o nariz:
“Tenho observado a necessidade de aprovar pautas que sejam legais e também proporcionais ao que é justo, pois não se pode estar indiferente à realidade da vida nacional, ao elevado deficit público e aos milhões de desempregados e excluídos”, declarou Raquel Dodge, sem saber que um manifesto azedo lhe cairia sobre a cabeça.
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