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Domingueiras do Tião

28 de agosto de 2022

A BÍBLIA DE BERG

Meu amigo Berg nunca gostou de ler. Ele mesmo confessa que nunca leu um gibi. Mas um dia decidiu ler a Bíblia de capa a contracapa. Fez mais: decorou tudo, capítulo por capítulo, passagem por passagem, versículo por versículo.

De um jeito que, se alguém citar perto dele alguma frase da Bíblia, ele diz de onde saiu, qual o capítulo, se do Velho ou do Novo Testamento e qual o versículo citado.

A explicação para esse súbito interesse pela leitura do livro sagrado ele tem na ponta da língua: um milagre.

Aconteceu um milagre na vida dele.

Berg tem uma oficina de lanternagem e pintura, atende a uma seleta clientela, trabalha para as mais importantes seguradoras do país, é, em suma, um homem realizado profissionalmente.

Um dia chegou à sua oficina um carro sinistrado. Pegou fogo e só ficou a sucata. E como sucata foi levado à oficina. A pintura derreteu, os pneus derreteram, os bancos foram consumidos, o painel virou uma bola de borracha, nem a direção sobrou.

Mas sobrou uma bolsa em forma de bola debaixo da carcaça do banco de passageiros.

Levado pela curiosidade, pegou a bolsa e a abriu. E lá dentro, no meio das cinzas, estava uma Bíblia praticamente intacta. Só havia queimado a metade da capa, mas o conteúdo se encontrava em perfeito estado. O mais curioso é que várias páginas do Livro se encontravam separadas por folhas de papel A 4. As folhas estavam chamuscadas e quando Berg abriu a Bíblia de cabeça pra baixo as folhas viraram pó. Um pó preto, pó de papel queimado.

O fenômeno fez Berg se emocionar. E nele despertou a curiosidade. Ele leu a Bíblia, a mesma que chegou no carro queimado.

O carro, depois, foi removido pela seguradora, mas a Bíblia ficou. Berg preparou para ela uma redoma de vidro e ali depositou-a como o motivo da sua fé, uma fé que nasceu depois do fogo.

 

A HISTÓRIA DO PADRE VALENTÃO

Existiu em Perdição um padre valentão. Chamava-se Frei Fernando e durou pouco na Paróquia, exatamente por causa da valentia.

Tinha porte atlético, media quase dois metros e era bonitão, muito embora não se tenha notícia de algum enxerimento seu com as mulheres do lugar. Os mais velhos garantem que o único padre enxerido a morar em Perdição foi Frei Ingrácio, mesmo sendo feio, gordo e míope.Quanto a Frei Fernando, não gostava de ser contrariado, partia logo para a briga.

Teve o mérito de reabrir o cinema, fechado pelo antigo dono, Ferreirão. O Cine Santa Maria foi reaberto no mesmo prédio do cine antigo, na Rua Nova. O primeiro filme exibido no Santa Maria foi “Irmã Alegria”, em preto e branco e tremido.

Claro que o cinema se encheu. Quando tocava a música da Ave Maria anunciando a abertura das portas e da bilheteria, via-se uma verdadeira procissão de cinéfilos descendo pela Rua Nova, cada qual com seu tamborete ou cadeira nas costas, pois o cinema não tinha assentos ainda.

Numa dessas sessões cinematográficas houve a primeira briga.

Era terminantemente proibido fumar durante a projeção. Dizia-se que a fumaça prejudicava a qualidade da fita. Mas o jovem Andrade não ligou pra isso, acendeu o seu cigarro e ao dar a primeira tragada, foi “tragado” pela voz do padre, que da plataforma erguida para abrigar a máquina projetora, viu a tocha acesa e a fumaça subindo.

Só que o padre, em vez de pedir, mandou “o moleque” Andrade apagar o cigarro.

Ofendido, o fumante gritou lá de baixo: “Venha apagar você, se for macho”.

E assim ficou, o padre lá de cima dizendo impropérios e Andrade cá embaixo rebatendo e dando o troco.

Como o padre não desceu de onde estava e Andrade não subiu a rampa, a briga ficou só nisso, nos desaforos, nas ofensas pessoais, no bate-boca.

A segunda briga aconteceu naquela tarde de festividades religiosas no meio da rua.

Celebrava-se a festa da padroeira, a missa era campal, o altar fora improvisado na porta da igreja e a cerimônia cobria todo o pátio da Rua Grande e da Rua Nova.

Frei Fernando dizia palavras em latim, sem deixar, porém, de prestar atenção ao seu derredor. E viu Lula Boquinha no maior converseiro com um amigo em frente à budega de João do Guirra.

Enfezado, abandonou o altar e marchou para o local do desrespeito. Aproximou-se de Lula apontando-lhe o dedo e o mandou calar a boca. Lula disse que não calava. O padre deu-lhe um bolachão na cara e Lula retribuiu o bolachão com um soco no nariz de sua reverendíssima.

Botando sangue pelos dois buracos da venta, Frei Fernando o excomungou em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Dizem que foi a partir dessa excomunhão que Lula aumentou sua fama de matador.

Quanto ao padre, contam que ele, ao saber que batera num individuo acostumado a matar gente, pegou o beco e foi embora sem esperar a transferência oficial.

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