POR PAULO MARIANO
O sol descambava lentamente para sua morada por trás da serra da Baixa Verde, no momento em que Marçalzinho, cadenciando as passadas, cruzava a Rua Grande na tentativa de atingir a rota do seu lar, quando foi abordado bruscamente por Mirabeau Lacerda.
-Quero lhe desafiar para um duelo!
Marçal, louco pra chegar em casa e repousar, queria lá saber de duelo? Mas indagou:
-Pode ser amanhã?
– Não! Tem que ser agora! – retrucou mestre Mira.
Marçal, com os olhos embaçados, imaginou que estivesse no século XVIII e visualizou um fidalgo da casa dos Lacerda, vestido com aquelas roupas de veludo escarlate, desafiando um nome da casa dos Lima, com veste de castor preto, forrado de gorgorão de seda, punhos rendilhados e sapatos bicudos, e apelou:
– Não tenho armas!
Mestre Mira estava decidido, resolveu o problema com rapidez:
– Eu tenho dois revólveres, um velho e um novo.
Marçal entendeu rapidamente:
– Já sei que o velho é o meu!
Mestre Mira foi objetivo:
– Claro!
Marçal baixou a vista e voltou a imaginar o cenário do século XVIII e viu no peito do desafiante o brasão dourado da casa nobre dos Lacerda e observou ainda seu adversário retirando as luvas como prenúncio de que suas faces rosadas seriam atingidas. Era o desafio.
Teria, é claro, que aceitar o duelo e honrar a casa dos Lima.
Esfregou os polegares nos olhos, voltou à realidade e alegou:
– Tudo bem, mestre. Eu estou pedindo para adiar pra manhã, porque você sabe como são essas coisas; eu tenho que fazer um testamento, o pessoal lá de casa não sabe de nada…
Mestre Mira concordou:
– Amanhã. Não esqueça!
Marçalzinho, atordoado, conseguiu chegar em casa e disse baixinho:
– E agora?
Refrescou o corpo com um banho, vestiu um roupão de cetim preto, atirou-se no sofá e começou a pensar:
– Um revólver velho, no mínimo, não dispara mais. E agora? Por que o duelo? Que foi que eu fiz? Será que cometi um sacrilégio? Um bárbaro insulto?
Acendeu um cigarro, puxou com força um longo trago. Levantou-se, equilibrou-se nas longas pernas e caminhou até à porta. A noite invadia tudo. Uma brisa do nascente clareou suas idéias. Lembrou-se que saíra cedo da manhã. Fôra ao encontro dos amigos no Bar do Gera. Os companheiros estavam lá; inclusive mestre Mira. Tomaram umas meiotas de cana, mas, a bem da verdade, não houvera discussão, nem brigas. Por que o desafio?
Consultou o relógio. Oito horas da noite. Pensou:
– Como passa rápido o tempo, e o duelo é amanhã…
Levantou a vista. O céu pontilhado de estrelas. Mas não era o momebto sw olhe estrelas. Caiu na realidade e o pressentimento de desgraça invadiu seu cérebro nervoso.
– E a hora do duelo? E os padrinhos? Será que posso levar meu fiel escudeiro Bosco Coxim? Onde seria o duelo? Talvez no paço da Lagoa da Perdição.
O telefone toca. Uma, duas, três vezes e Marçal permanece imóvel. Um pequeno silêncio e a campainha volta a insistir. Caminhou como um robô até o aparelho e antes de retirá-lo do gancho, puxou delicadamente o brinco da orelha e lembrou-se de um filme que assistira quando era estudante: “Disque M para Matar”.
Atendeu com um alô tímido e com a voz trêmula, perguntou:
– Quem fala?
Do outro lado um a voz forte e segura respondeu:
– Mestre Mira.
Marçal empalideceu. O corpo foi amolecendo. Revirou os olhos e desmaiou.
Minutos depois o médico tranquilizava a família:
– Não foi nada. Só um chilique. Um pequeno desmaio.
Não tinha apetite. Pra que jantar? Tomou apenas um copo de garapa e começou a arquitetar novo adiamento do duelo. Mas como? Mestre Mira fora taxativo: “Não esqueça. Amanhã!”
Ficou remoendo idéias:
-Será que duelo tem aquela história de último pedido? Último desejo? Se tiver, pedir o que?
Coçou a cabeça, acendeu outro cigarro, incorporou-se num varão antigo das idades heroicas, pensou numa frase pra ficar na história e disse triunfante:
– Hei de vencer! Hei de vencer! Hei de vencer!
Levantou-se de um pulo quando o telefone voltou a tocar, agarrou-o com firmeza e disse com estridência:
– Quem fala?
Uma voz com moderação disse:
-Olha Marçalzinho… aqui é mestre Mira… eu queria lhe pedir perdão… só estando louco… logo com você? Perdão, eu bebi demais… escutar, quer que eu vá aí pedir desculpas?
3 Comentários
Valeu, Tião. nós, leitores do blog só temos a agradecer essa homenagem a Paulo. Esse conto me lembrou muito a técnica literária de mineiro Fernando Sabino, outro cara foda da literatura brasileira.
Tião, esse conto é de algum livro do Paulo Mariano ?
É. Lamentos de Perdição