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Fecha Corpo: cachaça, guiné, arruda e fé na Sexta-Feira Santa 

4 de abril de 2021

 

Marcos Maivado Marinho

A paisagem é bucólica. Quem chega a Monte Alegre do Sul, no Circuito das Águas Paulista, tem a impressão de viajar no tempo. O trem parado na antiga Estação da Mogiana, parece estar de partida a qualquer momento. Perto dali, outro patrimônio septuagenário da cidade resiste à passagem do tempo: o Fecha Corpo.

Ninguém se perde na pequena Monte Alegre do Sul (SP). Seguindo qualquer uma das ruas de pedra chega-se à praça central, onde elevada no ponto mais alto e rodeada pelos casarões antigos, fica a Igreja Santuário do Senhor Bom Jesus. Há 72 anos, numa dessas casas de frente ao antigo coreto, a Sexta-feira Santa é dia de acordar bem cedo para preparar o Fecha Corpo. Uma infusão de cachaça com arruda e guiné tomada em jejum e acompanhada por um pãozinho com aliche.

Ainda na madrugada, Maurício Valente vai para o quintal colher as ervas medicinais de gosto e cheiro que acredita-se proteger o corpo contra o mau-olhado e a inveja. Antes dele, o pai e o avô também seguiram a mesma cerimônia sem nunca interromper o costume.

Bem antes de tornar-se a referência da garrafada da Sexta-Feira Santa, José de Oliveira Valente foi funcionário da antiga Companhia Mogiana de Estradas de Ferro. Aos 23 anos, na época da Revolução Constitucionalista de 1932, o jovem telegrafista foi chamado para trabalhar no ramal ferroviário de Tanquinhos, em Piracicaba, no interior de São Paulo.

Na época, toda a região enfrentava uma epidemia de malária e nem o mensageiro foi poupado do infortúnio. Caiu de cama muito doente e mesmo depois de receber tratamento, em Campinas, sentia o mal-estar provocado pelo agravamento da doença.

Ao saber da situação delicada de saúde do rapaz, Benedita, uma escrava alforriada e benzedeira, que trabalhava na casa do chefe da estação, procurou Zezé Valente. Ela trazia consigo a solução para o problema. Tinha a receita que curaria todo o mal.

Nhá Sabá acreditava que o paciente sofria de uma enfermidade espiritual, mais especificamente mal-olhado, e receitou uma mistura de cachaça com arruda e guiné. Nas religiões de matriz africana essas ervas são usadas como proteção contra energias negativas. A bebida deveria ser preparada nas primeiras horas da Sexta-Feira Santa e tomada em jejum, sempre na mesma data, pelo resto da vida.

Quando a saúde melhorou, Zezé estava convencido de que a simpatia fora a responsável pela cura. Como profissão de fé, seguiu com o ritual ano após ano, sem nunca falhar. De volta à cidade natal, de Monte Alegre do Sul, comprou um bar na rua principal e a partir de 1948 passou, também, a oferecer a bebida de forma gratuita aos clientes e amigos que frequentavam o comércio popularizando a tradição.

Seu Zezé morreu aos noventa anos, mas antes pode acompanhar o jubileu do ouro do Fecha Corpo, comemorado em 1999. Mesmo depois de sua partida, a cerimônia continua sendo feita nos mesmos moldes, só que para um público muito maior. “Quando meu avô começou, não tinha esse volume, ele atendia de 20 a 30 pessoas. Hoje, só na nossa casa recebemos mais de 2 mil”, conta Maurício.

CACHAÇA E TRADIÇÃO RELIGIOSA COMO ATRATIVO TURÍSTICO

O Fecha Corpo faz parte do calendário oficial de eventos de Monte Alegre do Sul. Toda sexta-feira antes da Páscoa, os sete mil habitantes do pequeno município paulista vêem o número de pessoas na cidade dobrar em busca de uma dose do “santo remédio”. Para atender todos os visitantes e peregrinos, além do casarão histórico da família Valente, é possível encontrar a mistura em qualquer alambique da cidade e até levar para casa.

Em todos esses anos, o evento presencial só foi cancelado duas vezes, em 2020 e 2021, por causa da pandemia do coronavírus.

A paulistana Angélica Lotto Cirineu era criança quando começou a frequentar com o pai e as irmãs o Fecha Corpo. “Faz parte da minha memória afetiva. A fila era gigantesca, aguardávamos horas para pegar um copinho. Como na época não podíamos beber, meu pai deixava que molhássemos a ponta do dedo para nos proteger”, lembra.

Hoje, é ela quem ajuda a organizar o evento no alambique da família. Desde que o pai abriu a destilaria Brisa da Serra, há dez anos, nas Mostardas, distrito de Monte Alegre do Sul, a família recebe centenas de viajantes no dia do Fecha Corpo. Com o aumento da procura – quem experimenta a bebida quer levar de presente para parentes e amigos – tiveram a ideia de engarrafar a aguardente composta em miniaturas de 250 ml.

Segundo Angélica, a procura pelo Fecha Corpo tem sido grande, inclusive para envio pelos correios. “Tem muita gente que paga promessa. Outros vêm a pé e de bicicleta de cidades vizinhas. Na região, temos muitos trilheiros. Grupos maiores alugam vans e aproveitam para fazer um roteiro de visita aos alambiques”.

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