Irapuan Sobral Filho
Nesses dias, uma fotografia me levou à infância, de onde à idade me captura à velhice. Lá estava Irapuanzinho de Seu Irapuan, sílfide e lépido – ao sabor das ruas, colhido pela imagem na árvore da vida.
Dona Chiquinha de Zé Duda era caçadora de mim. Quando conseguia me pegar, prendia-me ‘num banco de sua banca’ no Mercado Velho, onde funcionou o açougue, e ‘me preparava um prato’. Olho em punho, lançava-se sobre mim e exigia que eu terminasse, para, só depois, adocicar com a sobremesa: um doce de leite, que eu gostava muito.
Escrevo com o aroma de um cardápio que serviu, durante muito tempo, à casa do meu pai, em Jatobá, e à minha, na capital da Paraíba.
Arroz, feijão verde, farofa de cuscuz, galinha, bode, buchada, porco, macaxeira. Isso tudo com um tempero, que servirá à ceia celeste.
Eu só penso na expectativa de Papai, Dr. Ozeas, Antenor Aristóteles, Arnaldo e Iran Vieira, para recebê-la.
Não se receita tempero. Tempero é uma ‘mão da cozinheira’, de cujos dedos saem olhos à medida. Mas, na elaboração de Dona Chiquinha, tinha uma conversa que flambava o prato.
Ela era filha de Maria Gato, uma mulher que não se reduziu à condição feminina, apenas: Tirava da coragem de viver o viver de coragem, antes que existissem feministas.
Ela casou com Zé Duda de Dona Chiquinha e, de lá, trocou o nome, em reciprocidade: Chiquinha de Zé Duda.
Comecei a saber dela, do Hotel Piranhas, na esquina, aonde tínhamos que ir pegar a comida de casa.
Peço perdão aos filhos e filhas dela, para destacar Pedrinho de Chiquinha Duda, uma espécie de Jimi Hendrix de Jatobá. Outro dia, eu falava sobre ele e aquele jeito de viver até com a linguagem. Ele virou um mito da nossa infância. Não se sabe que instrumento musical passaria por ele sem que lhe fosse possível ‘…emitir um som que fosse impuro.’ É antológica a cena dele e o seu irmão Chico, Lalá de Seu Bonifácio e Chico de Sinhá, no Juventude Show, cantando ‘Padre Cícero’, de Tim Maia.
‘A Máquina do Mundo’ girou à volta ao paraíso e Pedrinho voltou muito cedo, sanfona no peito. Daí, Dona Chiquinha perdeu o nome no filho; e uma mãe é um nome no filho, como um filho é uma corda de coração de uma mãe. Ela deixou de ser toda mãe e complementou o espaço, arrumando-o com saudade.
Sempre foi a Dona da Casa, esposa, mãe e, creio, deve ter levado ao paraíso a condição de bisavó.
A gente gostava, e Walber de Maria Eulália fustigava, de exigir dela uma relato sobre alguma cena de Jatobá. Ela era de uma fidalguia hermenêutica que nos retratava a cena para cada ponto imaginado. Não restava nada mais a contar. Jatobá tem isso de ser uma galeria ambulante exposta em nossas lembranças.
De Jatobá, sei que ela passou por Cajazeiras e parou na capital, conduzindo nosso lugar, para nossos encontros. E fizemos nossas assembleias sempre que pudemos.
Zé Duda, que fará as honras da casa celestial, foi o seu verso – e o anverso. Pensávamos, ela inclusive, que ele seria eterno, porque personificava a paz, como sinônimo de tranquilidade, calma, tolerância. O que ela conseguiu ficar sem ele, deve ter sido o tempo (se há tempo no céu) que ele suplicava a Deus por ela. Foi atendido. Na verdade, eles eram únicos na terra, e nós nem desconfiamos: é que ‘ele completa(va) ela e vice-versa, que nem feijão com arroz’.
Há, no paraíso, um único nome para ambos, agora – sem sobrenome.
1 Comentário
Tião, não me lembro se foi Irapuan ou Chico Pinto que me levou a primeira vez ao quiosque de dona Chiquinha, inicio dos anos 90. Se bem que nem era preciso levar, o caboco saía da Assembleia e era logo fulminado pelo aroma da panela de rabada borbulhando. Dez passos depois da Casa de Tio Pita, era só dobrar à esquerda, estava em dona Chiquinha. Era um PF, PF de rabada, mas bastava isso para o cabra ficar o dia inteiro economizando o arroto para não deixar os eflúvios da iguaria escapar pela traqueia. Tenho esse prato em minha memória gastronômica como um referência. E o prato trouxe a reboque uma ruma de boas lembranças. Excelente texto. Bela homenagem de Irapuan a essa ilustre senhora.