opinião

João e Clarisse

7 de outubro de 2020

 

*Frutuoso Chaves

Eram sempre vistos juntos desde a oitava série quando passaram a sentar lado a lado no banco escolar. Antes disso, não. Afinal, em todos os cantos do mundo, menino e menina apenas se buscam quando começa ele a engrossar a voz e, ela, a afinar a cintura.

Não foi diferente com aqueles dois. Recém-ingressos na adolescência, decidiram que se completavam. Ele era bom em gramática e literatura, enquanto ela se dava de melhor modo com as ciências exatas. Aceitavam, apenas ocasionalmente, outras participações no estudo em conjunto liderado por um ou por outro, conforme cada inclinação.

Os pais logo se acostumaram a vê-los com frequência em cada sala e cada varanda. Quantas vezes, mesa posta, não aceitaram, prazerosamente, o convite feito por cada mãe? Neste quesito, surgiram, também, as preferências individuais, tal como em relação às matérias da escola. A sopa de casa, para aquela mocinha, não era tão boa quanto a da mãe dele. Por sua vez, ele preferia o frango ensopado servido na casa da amiga, aos sábados, invariavelmente.

Sem que percebessem, formaram um par constante, também, na praça e nos bailes. A dança coladinha, de ritmo lento, romântico, já lhes parecia bem melhor do que a das músicas alegres, saltitantes, no grupo de amigos, todos soltos em seus requebros e passos.

Quando colados permitiam-se o contato físico que, por mútuo acanhamento, não buscavam em outros ambientes. No pequeno clube, com todas as licenças conferidas pela música e pelas circunstâncias, apertavam-se os corpos e experimentavam todas as sensações disso decorrentes. Eram, afinal, ali, mais um par na multidão em quem ninguém reparava.

Uma vez, quase tiveram um beijo de namorados. A milímetros do toque nos lábios as bocas desviaram-se. E ele sentiu que partira dela o desvio.

Já em casa, na cama, agradeceu aos Céus por haver ignorado a rejeição da qual, é bom dizer, não estava assim tão certo. Teria ela reagido a alguma relutância sua? E relutou, sim, compreensivamente, pois a ninguém será fácil beijar com paixão uma amiga de vários anos.

Decidiu que, dia amanhecido, poria as cartas na mesa. Pessoalmente, não entendia a razão pela qual uma dupla que se amassava num salão de baile era incapaz de juras e beijos num pé de muro. Assim decidiu, mas não o fez. O tempo de amizade impedia tanto os beijos quanto a discussão do tema.

E a vida seguiu sem sobressaltos até o momento em que a notou mais fria e mais distante. Já se culpava pelo que tentara junto ao muro quando ouviu a história do desembarque de um sujeito bonito, atlético, na casa de uma amiga em comum.

“Clarisse, agora, deu para me procurar”, comentou consigo a tal amiga, maldosamente, sem dúvida, porquanto atribuiu essa aproximação inesperada e súbita a Cláudio, um primo da Capital a quem pai e mãe hospedariam por duas semanas.

Não passou recibo do baque. Caprichou no ar de descaso, mudou o rumo da conversa e logo se despediu da informante com as entranhas em brasa. Se outro nome ele tivesse seria “Dissimulação”.

O visitante havia ali deixado em alvoroço todas as meninas descomprometidas e com idade para o namoro. Bom de conversa e de futebol, também se fez amigo da rapaziada costumeiramente avessa a invasões do território por machos do tipo alfa. Luiza, uma moreninha sapeca, sem proibições para o Coreto e os banhos de rio, ganhou o moço.

Transcorridos não mais do que três dias já as duas mães notavam o esgarçar daquela união de carne e unha. “Onde anda João Vitor?”, perguntou uma delas. E a outra: “Você brigou com Clarisse?”. Respostas evasivas, envergonhadas, em ambos os casos.

Cláudio se foi e deixou com Luiza o endereço, o telefone e a promessa do reencontro. As meninas todas sossegaram e a vida retomou o curso normal, tranquilo, pachorrento.

A única novidade ficou por conta do desapego daqueles dois. Uma noite, na praça, ele abandonou a roda de bate-papo ao perceber a aproximação da amiga. No baile seguinte, ela teve a companhia de Tonico. E não ficou sem troco: sozinha, dias depois, a caminho de casa, percebeu os amassos e beijos que em outra ele dava. O cretino, perversamente, havia escolhido para tamanho espetáculo aquele muro e a prima de Cláudio.

Os namoros sucessivos logo chegaram ao conhecimento dos pais com brigas nas duas casas. “Não criei filha para ser galinha”, ela ouviu do seu. E não engoliu o choro, um pranto sem consolo, penoso, pesado.

A má fama, enquanto isso, afastava dele as meninas mais sérias e, de resto, o bom relacionamento familiar. “Quando você vai deixar de ser moleque e tomar jeito de homem?”, perguntou-lhe o juiz de direito de cujos cachos saiu, ao saber, também, da presença constante do filho nos bares. Cada repreensão doméstica era atribuída por um à existência do outro. E nunca mais se falaram.

Toda cidade, por menor que seja, dispõe de um bêbado com ares de filósofo, ou poeta. O dali era dado ao deboche: “Quem disse que a paixão não liberta?”. Outras vezes, porém, compadecia-se daqueles dois e, nessas ocasiões, desafiava o resto do mundo: “Quem já não perdeu um amor por medo de perder uma grande amizade?”. Eu prefiro calar. E vocês? (Na ilustração, o casal de Love Story, de final, por outras razões igualmente infeliz).

* Jornalista profissional com passagens pelos jornais paraibanos A União (Redator e Chefe de Reportagem), Correio (Redator e Editor de Economia), Jornal da Paraíba (Editorialista), O Norte (Editor Geral), O Globo do Rio de Janeiro e Jornal do Commercio do Recife (correspondente na Paraíba, em ambos os casos). Também pelas Revistas A Carta (editada em João Pessoa) e Algomais (no Recife).

 

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