Tenho denunciado o constante agir estratégico por parte do Ministério Público. Sim, o Ministério Público, embora tenha a ele sido reservado o papel de uma espécie de magistratura pelo constituinte, dando-lhe as mesmas garantias da magistratura, com o tempo foi invertendo (ess)a posição.
Ele recebeu um papel e desempenha outro (há exceções, como a área de direitos fundamentais, que, porém, fica estanque, sem comunicação, por exemplo, com a área que mais des-trata direitos: a área penal — ou o percentual de presos cautelarmente é fruto de chocadeira?).
O constituinte disse que o MP deveria agir como uma magistratura. Deu-lhe esse papel. Porém, transformou-se em uma espécie de inquisidor. Não é bruxa? Não importa. O importante é a confissão.
Incapaz de reconhecer até mesmo uma matemática prescrição — nega por negar —, faz recursos que lhe são vedados apenas para perseguir o acusado (por exemplo, maneja recurso contra clara posição do STF, como mostrarei mais adiante), oferece denúncias de centenas de laudas com “todos” os artigos do Código Penal e leis esparsas e o denunciado que se vire. Inverte o ônus da prova (vejam o título deste artigo). “Denuncio, ergo sum”. Digo que fulano cometeu 25 crimes e mais Orcrim (não pode faltar) e deixo a bola rolar. Se colar, colou. E, é claro, peço prisão. Por vezes, de crimes nos quais nem cabe. Ou de fatos de muitos anos.
Lembro que, como procurador, tinha de fazer uma filtragem nos processos. Conforme estatísticas de meu gabinete, entre 70% e 80% dos feitos penais vinham “bichados”, de alguma maneira. E coisas até bizarras, como a do sujeito que tenta o suicídio e escapa milagrosamente — consequência: denunciado por porte ilegal de arma. Dois patuleus vão pescar, nove peixes são “retirados abruptamente” de um açude, avaliados indiretamente em R$ 20 — denunciados por furto qualificado (pior: condenados e com alegações de primeiro grau sustentando a manutenção). Já vi coisas como um inquérito aberto e conduzido por uma vítima (inspetora de polícia) em que o MP se negou a examinar a nulidade (isso em duas instâncias).
Anos atrás eu dizia: “La ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos”. Passou o tempo e continua assim, com a diferença de que o autoritarismo passou também para os “calzados”. E dois erros não dão um acerto.
Parece haver uma tática: parcela considerável das denúncias ofertadas são feitas com — assim parece — o objetivo de confundir o defensor. E, ao fim e ao cabo, confunde até mesmo o juiz. Que por vezes aceita a denúncia pela própria dificuldade de paciência para rejeitar in limite. Como dizia meu antigo corregedor de Ministério Público, quando de meu estágio probatório: quem denuncia, faz a peça direta, objetiva, para não confundir a defesa. Se a peça pode se feita em dez páginas e a fizer em cem, é porque não tem fundamentos sólidos. Poderia pedir o arquivamento em 25 páginas. Denúncia tem os requisitos do CPP. Leia várias vezes, dizia-me ele. Não tem juízo de valor; não tem adjetivações. É: no dia tal, no local tal, fulano fez tal coisa. Sábio corregedor.
O emblemático ‘caso Michel Temer’
Poderia, aqui, falar de “n” casos. O que trago nestas mal traçadas representa um grau do simbólico. Cada advogado deve ter um ou mais casos para relatar.
Quero falar do “caso Temer”, quem chegou a ser humilhantemente aprisionado. Assim como Lula ficou preso mais de 500 dias por um juiz e um MP incompetentes (conforme decisão do ministro Fachin), Michel Temer e assessores foram denunciados por tudo o que se imagina.
Se fizeram isso com dois ex-presidentes, o que esperar para o andar de baixo? Lembro de um caso em que o MP recorreu até o STF por causa de um projetil usado como pingente — tendo que a ministra Carmen Lucia dar um contundente Habeas Corpus. À época, escrevi um artigo intitulado “Na ânsia por condenar, MPF usa inversão do ônus da prova no Supremo“.
Pois, seguindo com o “caso Temer”, leio que o juiz federal Marcus Vinicius Reis Bastos, da 12ª Vara do Distrito Federal, absolveu sumariamente o ex-presidente Michel Temer (aqui). Atenção: Temer foi preso e a denúncia estava toda bichada? Sim. Mas como, então, houve prisão? Parece que a sorte dos promotores é que a Lei do Abuso foi promulgada depois do fato. Não fosse isso e o caso poderia ser “de carteirinha”.
Não sou advogado de Temer e nem conheço os demais envolvidos. Escrevo para demonstrar que temos de refletir sobre o que está acontecendo com o Ministério Público. Ou com a parte criminal do MP, porque em outras áreas o MP tem prestado relevantes serviços.
Nem vou repetir aqui o escândalo dos diálogos da operação “lava jato”, que mostra um dark side of the law. E nem vou repetir o que disse o procurador Carlos Lima em rede nacional de TV, uma confissão vergonhosa. Parafraseando o livro de Lionel Shriver, “Precisamos Falar sobre o MP criminal”.
No caso de Temer et alii, consta que o Ministério Público sustentou a narrativa na existência de uma relação de 20 anos entre Temer, Grecco e Mesquita. Vejam. Não preciso fazer juízo de valor. Vou relatar apenas o que disse o juiz:
“Os supostos agentes corruptores, teriam ‘adivinhado’, com décadas de antecedência, que Temer iria, em 2016, assumir o cargo de Presidente da República”.
Pasmem. Pior, ou “melhor”, do que isso só o bayesianismo e jus-quejandos utilizados por Dallagnol em peças processuais (aqui).
Chega a ser hilário, não fosse jus-trágico: de forma taxativa e, como na música “Fio Maravilha”, o magistrado Marcus Vinicius só não entrou com bola e tudo porque teve humildade, diz, com certo grau de ironia:
“Em virtude dessa presciência, ambos teriam pago ‘vantagens indevidas’, em momento algum, repita-se, identificadas, ao agente público, aguardando ansiosamente que ocupasse o único cargo no Executivo que lhe permitisse a prática do citado ato de ofício”.
Parece uma comédia, tipo “brincando com a liberdade dos outros”. Conforme a decisão do juiz, nada foi minimamente demonstrado. Nem o relatório de movimentação financeira demonstrava a distinção entre o que seriam pagamentos de terceiro e o que seriam rendimentos de aplicações financeiras do período. Como prova em uma denúncia, é inútil, diz o juiz.
Uma parte da decisão chama a atenção, e que me motivou a escrever este texto, é a seguinte:
“O princípio da legalidade estrita e a garantia constitucional da ampla defesa demandam proceda o Ministério Público Federal à exata descrição da conduta tida por ilícita na inicial acusatória”.
Mas tem mais:
“A imputação sub examine, contudo, faz tábua rasa destas exigências constitucionais, como se lhe fosse lícito atribuir aos Demandados o ônus de se defender de pretensa acusação indeterminada, cujas várias alternativas, além de não terem sido descritas, comparecem desacompanhadas de quaisquer elementos que lhe deem verossimilhança”.
É o que falei acima e denuncio de há muito. O juiz colocou o dedo na ferida:
“Como se fosse lícito aos demandados o ônus de se defender de pretensa acusação indeterminada”…
Além de tudo, havia bens bloqueados. Quer dizer, com uma denúncia genérica e sem qualquer correlação fática, um ex-presidente e outras pessoas ficam com a espada na cabeça por bastante tempo. Quem paga a humilhação? Não está na hora de falarmos sobre isso?
Ora, uma coisa é uma decisão absolutória “comum-normal”. Por vezes, o MP não consegue demonstrar bem os fatos e a decisão é por insuficiência de provas. Ok. É do “jogo”. Porém, em casos como esses, chega-se às raias da necessidade de responsabilização do órgão estatal. Registremos: Temer foi absolvido sumariamente! Nem houve dilação probatória, tamanho a inconsistência da peça-ovo.
Fui membro do Ministério Público durante 28 anos. Sou amicus do MP. Inimigos o MP já os têm em demasia. Amicus dizem a verdade. Amicus devem ser como a esposa que ama o marido (não, não é uma frase machista): ela o avisa que a sobrancelha está parecendo uma taturana e que precisa ser aparada. E alerta o gajo, quem, com mais de 70 anos, quer sair por aí com roupas de jovem de 20 anos. Se ela deixa e nada fala, é porque já não o ama. Não é o meu caso com o MP. Eu continuo amando. E, por isso, aviso.
Amicus avisam quando algo está mal. Venho pregando um papel — que não se tira de uma cartola, como no filme “Deserto”, de Guilherme Weber — de magistratura para a instituição, pelo qual não deve e não pode fazer agir estratégico. Por isso elaborei o projeto que está conhecido como “Projeto Anastasia-Streck”. Veja-se a decisão do ministro Gilmar Mendes de alguns meses, que trata desse assunto.
Falo seguidamente sobre isso. Há vários modos de constatar o que venho dizendo. Por exemplo, em um caso envolvendo o ex-governador da Paraíba Ricardo Coutinho, o Ministério Público escolheu o foro. Primeiro denunciou junto ao Tribunal do estado. Depois, propõs diversas denúncias em primeiro grau, mesmo que firmada a competência. Afinal, estratégia é estratégia. Parece que o MP tem especial atração pelo ex-governador. Para lembrar, no ano passado chegou a pedir a prisão (solto por decisão do STJ), tendo por base algo que o STF abomina de há muito: prova baseada na palavra de um delator e em “elementos naturalísticos desatualizados” (palavras do STJ). Ocorre que, liberado o ex-governador, o Ministério Público — dessa vez o Federal — voltou à carga com a interposição de agravo. Legítimo? A resposta é solenemente não. Um advogado pode até — como “jus esperneandi” — tentar interpor recursos já chamuscados pela jurisprudência. Pode ser multado ou enfrentar problemas éticos. Porém, o advogado não é agente político do Estado. De novo, o (vedado e desaconselhável) agir estratégico do MP.
Aliás, falei disso aqui, em texto intitulado “Apropriação moral e política do Direito degrada o Estado de Direito”. Parece, mesmo, que o MPPB tem uma espécie de — como poderíamos chamar — cisma com o ex-governador. Problemas políticos — se existirem — devem ser resolvidos no plano da política. E não a partir de ações judiciais. Não esqueçamos que o ex-procurador-Geral da República Rodrigo Janot, de triste memória, cunhou a frase “enquanto houver bambu, vai flecha”. E isso não foi “legal”.
Não nos esqueçamos do “caso Temer”, que detalhei acima! Nem precisam buscar informações sobre casos como o do ex-governador Beto Richa, preso às vésperas da eleição. Ou das operações anuladas. Ou do fracasso de operações, como no Rio Grande do Sul, em que uma governadora teve de esperar anos para se ver absolvida. E de um secretário de Estado do governo dessa governadora, quem ficou preso por dias e depois nem denúncia houve. E nem precisamos lembrar das palavras de Dallagnol, para quem “garantias processuais são filigranas e o que vale é a política”. Apenas fixem a sentença do juiz Marcus Vinicius. Ela vale mais pelo simbólico do que pelo real (Castoriadis).
A decisão deve servir como lição. Todos os advogados do Brasil deveriam ler a sentença do “caso Temer”. E dali tirar lições para o enfrentamento cotidiano de denúncias fruto de agires estratégicos, nas suas mais variadas formas.
E mais não precisa ser dito. Por enquanto.
Afinal, nenhum réu tem o ônus de se defender de acusação indeterminada! É o que me dizia o meu sábio corregedor de MP!
2 Comentários
Hoje, dia 23 de março de 2021. Se o polêmico e engraçado princesence ZÉ MEDEIROS fosse vivo, estaria completando 69 anos de idade. Zé era meu primo e filho do Mestre Medeiros, um dos funcionários do DNOCS que juntamente com o engenheiro Falcão construíram o Açúde Jatobá II, na nossa Princesa Isabel. Zé Medeiros participou várias vezes do Blog do Tião Lucena “matando” as pessoas que via em fotos antigas que Tião publicava. Muitas dessas pessoas ainda estavam vivas, mas Zé dizia que já tinham morrido. Muito engraçado o velho Zé. Saudades do meu primo.
Lembro de Zé Medeiros e do seu pai o mestre João Medeiros. Moravam numa casa no hoje Bairro Maia. Em frente onde construíram o Fórum de Princesa. Na saída para Triunfo-PE. Eram dois irmãos, João o mais velho e José. Saíram daqui muito tempo depois que inauguraram o Jatobá. João foi ser carteiro do Correio em Campina e Zé foi morar em Caruarú, onde tempos mais tarde faleceu. Tudo gente boa.