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LETRA LÚDICA – O reino Encantado do Sertão

7 de agosto de 2022

 

Hildeberto Barbosa Filho

Alguém já disse que a memória é a imaginação deformada. Se é assim, posso pensar que a imaginação poderia ser uma memória distorcida. Aliás, tais categorias da mente humana, mescladas com outras, a exemplo da percepção, do pensamento e da linguagem, constituem elementos catalisadores do processo de criação literária. Arrisco mesmo em dizer que não existe criação literária sem o consórcio indissolúvel da memória e da imaginação. Uma não vivendo sem a outra, como o aconchego necessário das plantas xifópagas.

Tais reflexões me ocorrem porque leio e releio o texto Perdição, do jornalista e escritor Tião Lucena, centrado sobretudo na recuperação, quase mitográfica, de uma Princesa Isabel transfigurada, pela força mágica das palavras, num “reino encantado” do sertão, formulado na diversidade de seu ethos, costumes, lendas, paisagens, personagens, comédias e tragédias, a compor um pequenino relicário do passado.

Aqui, o autor não se prende ao tema passional da Revolução de 30, não traz João Pessoa nem José Pereira para encenar o conflito axial da história paraibana, nem tampouco o travelling felliniano das emulações jornalísticas, da era de Biu Ramos, Frutuoso Chaves, Arlindo Almeida, Chico Pinto, Natanael Alves, Toinho Vicente e tantos outros que se prefiguram como memória vívida da fase romântica do impresso.

O que vem desta vez, sempre a seu jeito direto, destabocado, sarcástico, sem papas na língua, é um conjunto de quadros sociais e antropológicos, atestando a figuração estranha que demarca a existência humana em suas práticas cotidianas, anseios psíquicos e surpresas morais.

A própria cidade “Perdição”, talvez mais imaginária que real, talvez mais fiel à essência do ambiente psicológico e topográfico do que a própria Princesa concreta, hoje tragada, como tantas outras, pela lógica fria e anônima do progresso, da ordem do capital e do mercado, sem falar na motocicleta que demoveu o galope dos cavalos, como que abre, em tela panorâmica, a sequência das cenas e retratos que vão corporificar sua fisiografia existencial.

“O reino encantado do sertão se chamava Perdição, ficava no alto de uma serra e era cercado, nos seus quatro cantos, por quatro serras maiores. {…} Do alto de uma delas, a mais comprida, se avistava um bonito vale e, no centro desse vale, dava pra ver o reino encantado e seus habitantes, vistos do alto em tamanhos tão pequenos que, quem via de lá de cima pensava que estava vendo pequenas formigas”.

O parágrafo funciona como um abrir das cortinas, para se avivar, em movimentos rápidos e contorcidos, a coreografia de espantos cristalizada em pequenas narrativas ou descrições, de casos e “causos”, de situações e de apelos, nos quais o homem, esse bicho doido e inventivo, sobressai no seu destino de violência, solidão, tristeza, coragem e desamparo. Antes dos “Começos”, o narrador já nos previne, dentro daquela concepção fatalística que envolve o lugar e as criaturas: “Mas como em todo Reino encantado do Sertão também havia morte. Pessoas se amavam e se matavam”.

Eis aqui a síntese mais que perfeita desses enredos mirabolantes que Tião Lucena costura com seu estilo saboroso e picante, onde o “muito riso e o pouco siso” cadencia o tom e alimenta a perspectiva.

Os doidos, as mortes, o adultério, os loucos amores, com sua rigorosa e surpreendente tipologia (“fujão”, “sem fim”, “carnal”, “circense”, “interesseiro”, “animal”, “bandido”, “importado”, entre outros), assim como os valentes e os engraçados, formam e conformam os motivos geradores das histórias e dos acontecimentos aqui contados.

Não vejo neles a posição da palavra ficcional transmutada em conto, novela ou romance. Falta-lhes aquele fio de unidade que liga a distância formal dos ingredientes literários. É certo, contudo, que o peso do espaço, a presença ostensiva e dominante de “Perdição”, na sua qualidade de reino encantado do sertão e paisagem mítica ou território mágico, aparece como pano de fundo, regendo os caminhos e descaminhos de seus erráticos habitantes. Creio não ser, todavia, suficiente para amarrar, na coesão e na coerência, o desenvolvimento de uma autônoma fabulação.

Mas sinto nesses quadros a energia estética necessária para lhes qualificar como autêntico texto literário. O insólito dos personagens, o grotesco das ocorrências, o estilo solto e persuasivo, a riqueza antropológica, o valor documental, o apelo à imaginação e à fantasia, o poder evocativo, enfim, o sabor e o saber que se experimentam com a iguaria de suas páginas, contribui para a disposição do texto, no limite mesmo daquilo que entendo por um texto artístico.

É ler e conferir!

 

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1 Comentário

  • Reply Aldo Lopes de Araújo 9 de agosto de 2022 at 14:17

    Hildeberto Barbosa Filho carrega nas costas um fardo imenso de leituras e conhece como ninguém as peripécias narrativas do mundo, das Itacoatiaras do Ingá ao livro digital, de Zé da Caverna a Umberto Eco e Bob Dylan. Daí ser moleza para ele mandar dois dedos de prosa sobre esses escritos de Tião Lucena. Tendo como modelo a narrativa breve, Tião explora a vertente trágica de seus personagens, como faz Nelson Rodrigues. Os tipos humanos descritos por esse princesense são viventes municipais de carne e osso. Como exemplo temos o caso de um iminente crime de feminicídio. A cena do crime está toda montada, a violência em vias de saltar aos olhos do leitor mais atento, quando Tião desconstrói o previsível e transforma o texto numa peça risível, cômica. O “valentão” olha para a mulher e contra ela “dispara dois tiros com a boca”. E assim, nada acontece, entre mostos e feridos escapam todos.
    Essa receita de escritor – sou testemunha – Tião aprendeu na feira de Princesa, escutando as histórias do povo, enquanto auxiliava seu Miguel no ofício de retratista. Parece que estou a ver aquele menino magro, o cabelo grande, uma calça boca de sino e um sapato cavalo de aço, ícone dos jovens da época. Com uma tesoura à mão, o futuro craque da redação de A União cortava a feiura do povo a 3×4, enquanto seu Miguel botava a cabeça dentro daquele saco, para ficar mexendo nos elementos dentro da caixa quadrada sobre o tripé. Pai e filho naquela vida lambe-lambe. Eu era pequeno e passeava com mamãe no meio da feira e jurava que tinha visto um monstro de três pernas, cabeça quadrada e olho de vidro, um olho só na testona de madeira. Mamãe disse que aquilo era uma máquina de fazer retrato. Depois que seu Miguel tirou a cabeça de dentro do saco, mamãe falou com ele e me sentou num tamborete. “Olhos abertos”, gritou seu Miguel. Quando saiu o retrato eu estava com a cara franzida por conta do sol, a mesma que tenho hoje aos 65 anos de idade, agora engelhada por conta da quentura dessas lembranças me incendiando por dentro.

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