A prisão preventiva do ex-presidente Temer novamente evidenciou a distorção dos fundamentos que justificam e legitimam a prisão cautelar. Inicialmente, é preciso recordar que as prisões cautelares têm como finalidade a tutela do processo, é uma instrumentalidade dirigida a garantir o normal desenvolvimento do processo e, como consequência, a eficaz aplicação do poder de penar. São medidas destinadas à tutela do processo. Não servem como antecipação de pena ou mesmo para o “combate à impunidade”, que nada mais é do que um chavão vago e genérico, que serve a qualquer discurso punitivista. Prisão cautelar é tutela do processo e, por isso, destina-se a garantir a prova ou a eficácia da aplicação da lei penal.
Infelizmente, a prisão preventiva é constantemente distorcida e desvirtuada para servir de instrumento de punição imediata e efeito sedante da opinião pública. Com razão, Ferrajoli[1] afirma que a prisão cautelar é uma pena processual, em que primeiro se castiga e depois se processa, atuando com caráter de prevenção geral e especial e retribuição. Ademais, diz o autor, se fosse verdade que elas (as prisões cautelares) não têm natureza punitiva, deveriam ser cumpridas em instituições penais especiais, com suficientes comodidades (uma boa residência) e não como é hoje, em que o preso cautelar está em situação pior do que a do preso definitivo (pois não tem regime semiaberto ou saídas temporárias nem visitas e trabalho).
A prisão preventiva acabou sendo inserida na dinâmica da urgência, desempenhando um relevantíssimo efeito sedante da opinião pública pela ilusão de justiça instantânea. O simbólico da prisão imediata acaba sendo utilizado para construir uma (falsa) noção de “eficiência” do aparelho repressor estatal e da própria Justiça. Com isso, o que foi concebido para ser “excepcional” torna-se um instrumento de uso comum e ordinário, desnaturando-o completamente. Nessa teratológica alquimia, sepulta-se a legitimidade das prisões cautelares. O problema, portanto, não é legislativo, mas cultural, em decorrência da mentalidade inquisitorial e do espetáculo que permeia os atores jurídicos.
A prisão de Temer se situa exatamente na linha do efeito sedante e do desvirtuamento da cautelaridade, especialmente pela violação do princípio da provisionalidade, um dos legitimantes da prisão preventiva e que permite sua coexistência com a presunção de inocência (ao lado da jurisdicionalidade, provisoriedade, excepcionalidade, proporcionalidade e contraditório[2]).
O desprezo pela provisionalidade, consagrada no artigo 282, parágrafos 4º e 5º, conduz a uma prisão cautelar ilegal, não apenas pela falta de fundamento que a legitime, mas também por indevida apropriação do tempo do imputado.
Portanto, a prisão preventiva ou quaisquer das medidas alternativas poderão ser revogadas ou substituídas, a qualquer tempo, no curso do processo ou não, desde que desapareçam os motivos que as legitimam, bem como poderão ser novamente decretadas, desde que surja a necessidade (periculum libertatis).
Nas prisões cautelares, a provisionalidade é um princípio básico, pois são elas, acima de tudo, situacionais, na medida em que tutelam uma situação fática. Uma vez desaparecido o suporte fático legitimador da medida e corporificado no fumus commissi delicti e/ou no periculum libertatis, deve cessar a prisão ou sequer pode ser decretada. O desaparecimento de qualquer uma das “fumaças” impede a decretação ou impõe a imediata soltura do imputado, na medida em que é exigida a presença concomitante de ambas (requisito e fundamento) para decretação ou manutenção da prisão.
E a “provisionalidade” é orientada por uma clara noção de tempo, de contemporaneidade do periculum libertatis. Intimamente relacionada com a “provisionalidade” está o “princípio da atualidade do perigo”. Para que uma prisão preventiva seja decretada, é necessário que o periculum libertatis seja atual, presente, não passado e tampouco futuro e incerto. A “atualidade do perigo” é elemento fundante da “natureza” cautelar. Prisão preventiva é “situacional” (provisionais), ou seja, tutela uma situação fática presente, um risco atual. No RHC 67.534/RJ, o ministro Sebastião Reis Junior afirma a necessidade de “atualidade e contemporaneidade dos fatos”. No HC 126.815/MG, o ministro Marco Aurélio utilizou a necessidade de “análise atual do risco que funda a medida gravosa”. E citamos decisões antigas propositadamente, pois não é uma tese criada à la carte, para beneficiar Temer, senão uma posição consolidada de reconhecimento do princípio da atualidade do perigo. Isso porque perigo antigo era ilusão, impossível de permanecer por largo espaço de tempo.
É imprescindível um juízo sério, desapaixonado e, acima de tudo, calcado na prova existente nos autos. A decisão que decreta a prisão preventiva deve conter uma fundamentação concreta de qualidade e adequada ao caráter cautelar. Deve o juiz demonstrar, com base na prova trazida aos autos, a probabilidade e atualidade do periculum libertatis.
Se não existe atualidade do risco, não existe periculum libertatis, e a prisão preventiva é despida de fundamento democrático. O desprezo pela provisionalidade conduz a uma prisão cautelar ilegal, não apenas pela falta de fundamento que a legitime, mas também por indevida apropriação do tempo do imputado.
Foi exatamente o que se viu no caso Temer. Basta ler a decisão para ver que se refere a fatos em tese praticados em 2013-2015. Onde está a atualidade do risco? A contemporaneidade? Prisão preventiva agora, por fatos e supostos riscos que remontam há anos é ilegal. Ademais, a “prova” já está soberbamente protegida a essa altura…. Então, que se tenha o devido processo e, ao final, se comprovado os fatos imputados, execute-se a pena.
É preciso dar um basta nesta cultura de banalização e distorção da prisão cautelar. Trata-se de uma medida extremamente gravosa e que impõe grande sofrimento desproporcional ao mero acusado, devendo ser reservada para casos graves em que realmente exista cautelaridade, incluindo a atualidade do periculum libertatis. Ensina Carnelutti[3],
as exigências do processo penal são de tal natureza que induzem a colocar o imputado em uma situação absolutamente análoga ao de condenado. É necessário algo mais para advertir que a prisão do imputado, junto com sua submissão, tem, sem embargo, um elevado custo? O custo se paga, desgraçadamente em moeda justiça, quando o imputado, em lugar de culpado, é inocente, e já sofreu, como inocente, uma medida análoga à pena; não se esqueça de que, se a prisão ajuda a impedir que o imputado realize manobras desonestas para criar falsas provas ou para destruir provas verdadeiras, mais de uma vez prejudica a justiça, porque, ao contrário, lhe impossibilita de buscar e de proporcionar provas úteis para que o juiz conheça a verdade. A prisão preventiva do imputado se assemelha a um daqueles remédios heroicos que devem ser ministrados pelo médico com suma prudência, porque podem curar o enfermo, mas também podem ocasionar-lhe um mal mais grave; quiçá uma comparação eficaz se possa fazer com a anestesia, e sobretudo com a anestesia geral, a qual é um meio indispensável para o cirurgião, mas ah se este abusa dela!
Em resumo, não somos contra prisão cautelar nos limites legais, até porque defendemos a possibilidade de se prender alguém (investigado e/ou acusado), desde que presentes os requisitos legais. Nos opomos ao uso da prisão com outros fins, estranhos ao devido processo legal, principalmente ante a ausência de contemporaneidade dos elementos concretos que podem a autorizar, justamente porque perigo antigo era ilusão, impossível de permanecer por largo espaço de tempo. Prisão para servir de exemplo é a subversão de sua função democrática.
P.S. Não há o que comemorar no dia 31 de março, salvo lembrar que tortura nunca mais.
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