opinião

LUZ DOS MEUS OLHOS

10 de fevereiro de 2021

 

GONZAGA RODRIGUES 

Sobre Martinho, quem tocou fundo aqui na corda ou nervo mais sensível foi Ana Adelaide Peixoto ao lembrar “a imagem daquele homem enorme, aos prantos e aos frangalhos no velório, e com três filhos pequenos para criar. Chorei junto!”. E cravou-a para sempre.
Eu também, amiga. E foi a imagem desse homem enorme que me reteve, sábado passado, para não ir, de vontade própria, vê-lo inerme num caixão, de mãos cruzadas no peito sem ter sido ele quem as tivesse cruzado. E com flores que nunca pediu nem desejou. Ver Martinho de olhos que o sono e o sonho outras vezes se negaram a fechar, sem o olhar de sua vida sempre sublinhado por um meio riso de ironia ou de indulgência com as contingências da vida. Preferi, ou melhor, rendi-me à alternativa de permanecer com as imagens desencadeadas por sua crônica de ontem, amiga, ou com a do jovem de cabelos brancos, avô de sete netos, que ilustrou o noticiário.
Antes de conhecer Martinho, já o conhecia de texto. Como estou conhecendo agora meninas e rapazes que escrevem bem neste jornal. Foi depois de 1964, neste particular um ano marcante, pois ele não se incluía, ainda, entre os companheiros que faziam a minha festa nos domingos de visita no antigo sanatório Clementino Fraga.
Eu também era de cinema, fundador da ACCP com José Rafael, José Ramos, Wills, padre Fragoso e Barreto Neto. Ensaiei, pelo jornal O Norte, uns poucos reviews muito superficiais. E me estabeleci nesse novo nome, Martinho Moreira Franco, no “Correio” da fase em que José Rafael e Linduarte pontificavam nos jornais nesse gênero de crítica. E num fim de tarde, à saída da matinê do Plaza, dou com o belo rapagão de cabelos longos, não tanto quanto os dos Beatles. E vem daí, meio século seguido, no trabalho, nas afinidades, em família, na vida, enfim, essa ligação diária que eu não poderia ver, jamais, de olhos cerrados e mãos cruzadas para sempre. Que me perdoe a família, a comadre Goretti, Lu, Maria Amélia, Mengo, a afilhada Maria Isabel, João e o neto que vinha fazendo dupla com ele na foto do WhatsApp.
Com esse Martinho, “que virou uma estrela luminosa” no céu de Ana Adelaide, vai-se a luz de muitas dúvidas e incertezas do meu cotidiano de amigo e de cronista. Foram cinquenta anos de contactos e tira-teimas mútuos e diários. Ele lia e ouvia melhor e com mais argúcia ou astúcia do que eu. Sobretudo as leituras do dia, fossem do jornal ou do comportamento humano. Às vezes se irritava: “Não leste o jornal de hoje, não?” Eu já respondia complexado: Li. “E Não viu isso?”. Ele via o que os outros não viam, como selou o patriarca.
Nesses cinquenta anos, quantas dúvidas tirei, quantos títulos em textos ele teve de conferir ou rejeitar? Não era de esquerda, não era de direita e nem por isso um alienado político. Via a falha na cara do rei, como fazia com governadores com quem trabalhou mais direto. Com Burity, então, nem se fala. Várias vezes Sua Excelência deixava o Palácio para correr ao pequeno terraço de cadeiras duras de Martinho antes do ato ou da decisão.
Sobre ele, não vai ficar aqui o que sei e prosseguirei cortejando. Mas há muito, muito o que dizer sobre ele.

Crônica publicada em A União

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