opinião

Memorial de Maria Aquina

27 de março de 2020

 

ALDO LOPES DE ARAÚJO

Abri o blog de Dominguinhos ontem à tarde e tomei conhecimento da morte de Maria Aquina Lopes. Foi a primeira notícia do dia, e me veio como um coice, uma espécie de patada da velhice, com todas as murrinhas desse mundo velho e suas bizarras epidemias. Aquina foi vítima dessa doença escrota chamada câncer, um troço invasivo e avassalador que em menos de um ano tirou a vida de três membros da ilustre casa de Zé de Abel: dona Toinha, a mãe de Aquina, Danda, seu irmão, e agora ela. Registre-se que o próprio patriarca, o lendário Zé de Abel, foi abatido por um ínfimo e quase imperceptível sinal no canto do nariz, câncer de pele, na década de 80, quando tinha apenas 52 anos de idade. Atordoado, abandonei o leptop e fui à janela, meu cérebro processando a má notícia e um gosto amargo na boca. Escorrego as vistas nas franjas da serra, vejo lá embaixo no vale as águas barrentas do riacho de São José cobrindo as vazantes, descendo em demanda do rio Piancó. Aquina não viu a enchente de anteontem banhando as fímbrias do Cavaco, o sítio mítico e paradisíaco onde ela teve o prazer de viver os derradeiros dias de vida ao lado dos filhos e do seu marido, o médico Edivaldo Virgulino de Medeiros, Doutor Zoma, codinome consagrado em todo o território livre de Princesa, em todo território nacional.

Maria Aquina foi em vida uma espécie de Maria Moura, personagem do romance de Rachel de Queiroz baseado em mulheres empoderadas como as matriarcas cearenses Bárbara Alencar e Fideralina de Lavras, entre outras. Nossa heroína do Cavaco mantinha no sítio o espaço ideal para o descanso de final de semana, para o churrasco com os amigos e o contato com a natureza. Além da beleza da paisagem havia o bom gosto pela manutenção das características arquitetônicas, o mobiliário e a iconografia do casarão, com interferências mínimas na paisagem, tudo bem longe da cafonice e do delírio brega dos novos ricos, numa clara demonstração de respeito à memória dos seus avoengos, como fazem os europeus. Mãezona, mandona, valente, Aquina dirigia caminhão, trem, cavalo, navio, trator, região de ensino, delegacia, a família, os filhos, se metia em política, gostava da vida boêmia e de quebra ainda organizava o movimento e orientava o carnaval. Encarou a morte com uma coragem avassaladora e deu exemplo aos frouxos e covardes, entregou o seu corpo a procedimentos cirúrgicos dramaticamente invasivos, quando se sabe da existência de pessoas que não suportam uma picada de agulha, como eu. Não conversei com ela nesses derradeiros dias, devia tê-lo feito, pelo nosso laço de parentesco, somos primos, sua mãe é prima legítima da minha, mas levo comigo a sua melhor imagem, aquela do dia do churrasco no sítio ao lado de Zoma, Dominguinhos, Maísa, Chota, Justina, sua irmã, além de outras pessoas cujos nomes não me chegam à lembrança.

Não quis vê-la morta, da mesma forma que fugi dos funerais de minha mãe. Na foto da família postada no blog aparecem os filhos ao lado de sua célula-mater e do pai, meu amigo Zoma, da estirpe dos Virgolinos, família tradicional de Princesa. Os filhos são tantos que quase não cabem na fotografia, mas couberam o tempo todo no coração de Maria Aquina. Soube que pediu para ser cremada, não sei se pediu também para jogarem suas cinzas no riacho que banha o sítio Cavaco, de propriedade da família. Tivesse sido esse seu último desejo, seria a volta dela à quintessência do pó, na fórmula skakespeareana, do pó das estrelas e dos astros do universo, a simbologia do seu coração cheio de amor e alegria por ter sido a mulher, a profissional e ao mesmo tempo a progenitora da mais bela e inteligente prole da cidade. O riacho que sempre foi o Ganges sagrado de sua existência seria o lugar ideal para receber suas cinzas.

Minhas condolências a Zoma e aos filhos Heydrik, Fred, Dinho, Quênia, Haendel e Faina. Eles precisam saber que todas as manhãs, quando a névoa se dissipa, eu olho para o riacho de São José, olho para o Espinheiro e para o Cavaco e vejo garças voando no céu. Maria Aquina é uma delas, vai ficar voando por ali como o espírito santo pairando sobre as águas, tomando conta das suas crias, do seu riacho sagrado e de seu Cavaco.

 

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1 Comentário

  • Reply Angela 27 de março de 2020 at 11:30

    Com um texto tão bonito, tão amigo, cheio de lembranças, ternura e emoção, sua amiga deve estar sorrindo feliz lá no céu .

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