Memórias

O CANGACEIRO QUE VIROU SANTO

23 de julho de 2020

No cemitério de Mossoró, a 340 quilômetros de Natal, um túmulo obra milagres. Ao redor dele são feitas promessas de todo tipo e nele são depositadas oferendas de agradecimento pelas graças recebidas. E mais ainda: casais costumam manter relações sexuais em cima do granito que reveste a cova para alcançar a suprema glória de fortalecimento sexual.

E quem seria o santo depositado no Cemitério São Sebastião, de Mossoró, capaz de tantas graças e milagres?

Não foi padre, tampouco pastor. Trata-se do cangaceiro Jararaca, descrito por Câmara Cascudo como “forte, resistente, ágil, moreno-escuro, atirador exímio, grande lutador de facas”.

Em vida, Jararaca praticou todo tipo de maldades. A sua preferida era jogar criancinhas para o alto e espetá-las com a ponta do punhal. As crianças morriam devagar, enquanto Jararaca gargalhava.

Jararaca morreu na invasão a Mossoró em 1927.

Lampião mandou dizer que invadiria a cidade e o povo se armou para resistir.

Lampião chegou pela manhã. Os cangaceiros, cantando Mulher Rendeira e atirando para o alto, pensavam encontrar a cidade deserta, mas o que se viu foi tiro de todo lado. Surpreendidos, os bandidos tentaram revidar. O cangaceiro Colchete tombou com um tiro na cabeça. Jararaca, ao vê-lo caído, correu ao seu encontro para prestar socorro e foi atingido no peito. Caiu e levantou-se, sendo novamente atingido na bunda e na perna.

Os cangaceiros fugiram sem levar nada.

Jararaca conseguiu rastejar por entre a multidão – que estava distraída arrastando o corpo do cangaceiro Colchete pela cidade – e alcançar a ponte férrea, na saída para Areia Branca. Dormiu próximo a um arbusto e, ao amanhecer, arrastou-se por mais alguns metros até encontrar um grupo de trabalhadores da estrada de ferro. A um deles, chamado Pedro Tomé, Jararaca entregou uma quantia em dinheiro e pediu que fosse à cidade buscar algodão, gaze e água oxigenada.

Pedro Tomé, um homem caseiro, trabalhador e pouco dado aos fuxicos que corriam pelas praças da cidade, estava por fora dos eventos virtuosos da véspera. Ouvira o barulho dos tiros, ao longe, mas os tomara por fogos de artifício – 13 de junho é o dia em que se acendem enormes fogueiras em homenagem a santo Antônio. Ao chegar à farmácia e contar sobre o homem ferido, foi alertado de que se tratava de um cangaceiro. Apavorado, Tomé voltou para casa protegido por dois policiais. Jararaca recebeu voz de prisão e foi levado para a cadeia pública de Mossoró, no Centro da cidade.

A cela em que Jararaca ficou trancado tinha grades que davam para a rua. Centenas de mossoroenses amontoavam-se em frente ao local para ver um cangaceiro de perto, como um leão feroz preso a uma jaula do zoológico. Enchiam-lhe de perguntas. Queriam saber quantos homens já havia matado. Se amealhara fortuna no cangaço. Quais eram seus arrependimentos. Até hoje, corre a lenda de que, nesse momento, Jararaca teria confessado sentir um único remorso: de aparar crianças com a ponta do punhal.

Na noite de 20 de junho – a data exata ainda é motivo de controvérsias entre pesquisadores –, Jararaca foi acordado por dois policiais, com a justificativa de que seria levado à capital para tratamento médico. Sonolento, o bandido, segundo escreveria Raul Fernandes, teria pedido alguns minutos para recolher os pertences, dentre eles seu velho par de alpercatas. “Deixe-as aí. Em Natal, você será presenteado com sapatos de verniz”, disse, com ironia, um dos policiais.

Do lado de fora da cadeia, uma escolta formada por oficiais – dentre eles, o tenente Laurentino de Morais – aguardava o cangaceiro, logo acomodado no banco de um possante Willys-Knight com capota de lona. Quando o veículo já pegava velocidade, o cangaceiro olhou pela janela e estranhou o caminho que estavam tomando. Em vez da estrada para Natal, iam na direção contrária. Em frente ao Cemitério São Sebastião, o motorista pôs o pé no freio e desligou o motor. Os policiais arrastaram o bandido para fora do carro, adentraram o cemitério e, ao dobrar à esquerda, chegaram a uma cova aberta.

O que se sucedeu foi, durante anos, motivo de controvérsia. O pesquisador Kydelmir Dantas, membro da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço, lembra que, enquanto esteve na ativa, o sargento Pedro Silvio de Morais, um dos comandantes da resistência, sustentou que Jararaca havia sido morto com uma coronhada do fuzil de um policial, “sem que seu corpo sofresse qualquer decepação”. O depoimento de Morais consta do livro Lampião em Mossoró, publicado pelo historiador potiguar Raimundo Nonato em 1955. Em 1996, já na reserva, o mesmo Morais daria outra versão dos fatos para o historiador Raimundo Soares de Brito, autor de Nas Garras de Lampião: “De todas as ocorrências daquela noite, a que mais me comoveu foi quando os seus coveiros quebraram, com picaretas e coices de armas, as pernas do infeliz bandoleiro, pois a cova que fora cavada antes era muito pequena.”

Morria o bandido e nascia a lenda. Uma lenda capaz de obrar milagres.

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