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O crepúsculo do meio dia

10 de agosto de 2019

Marcelo Piancó

O lugar é um simples botequim em Tambaú, localizado numa ilha onde coabitam quatro quiosques, esse se destaca, mas não pela simplicidade, pela má aparência mesmo, ele destoa dos vizinhos pelo visual, perto dele os outros parecem três almofadinhas sentados no mesmo banco de praça onde dorme um mendigo. Embora todos os quiosques tenham a mesma idade, entre os outros, ele parece um documento que envelheceu num processo de grilagem, pois o seu teto, do mesmo PVC dos outros, já amarelou e cedeu, o seu piso úmido e arenoso escureceu e o seu esqueleto de madeira aparenta um desgaste maior, como se fosse o único da ilha a ganhar propriedades férreas e se entregar caprichosamente aos efeitos da maresia. As mesas desnudas de toalhas guardam um certo charme “retrô”, emprestado de uma elegante marca de cerveja pouco consumida lá. A disposição dos frízeres são feitos tão aleatoriamente que é passível se pensar que o intuito é o de afugentar qualquer cliente com um mínimo de bom gosto. Assim é o quiosque Pé na Areia, uma espécie de boteco indomável que subverteu as correntes oficiais da padronização e foi conquistando seu próprio estilo às custas de desleixo e espírito de liberdade. Porém entre tantos atributos que lhe fazem falta ou lhe rareiam, um ele tem de sobra, um que nem os nobres vizinhos de casaca possuem, alma, alma de boteco, ele tem tanto espírito de botequim que reza a lenda que o Pé na Areia foi erguido sobre um antigo cemitério boêmio.
Na realidade, seu passado lhe absolve, ele é o primeiro caso de transplante do meio etílico onde os fígados continuaram os mesmos, mas o boteco é quem foi removido de um lugar para o outro, seja para salvar a vida de tantos ou talvez ceifar a de outros mais. Pouca gente sabe, mas o Pé na Areia é apenas o antigo Bar do Pau Mole que mudou de nome e de lugar sem perder sua clientela, a não ser aqueles que subiram para o céu bar, sem perder sua essência aparentemente senil e o seu caráter de menino traquina.

O certo é que até hoje ninguém, nem o maior sabichão, o considerado wikipédia de botequim, sabe dizer com absoluta certeza se foi o bar que fez a clientela ou a clientela quem fez o bar, dada a cumplicidade e animosidade afetiva que os ligam. É bom ressaltar que essa clientela de quem falo não são os sazonais turistas, os solitários transitórios, os casais inebriados pela lindeza do mar e nem os econômicos desavisados atraídos pela decoração franciscana. Não, eu falo dos membros da mesa mais solene do Pé na Areia, tão solene que é formada com protocolo e hierarquia seguindo um regimento inesistente, mas com artigos tão bem definidos na cabeça de todos que a compõe que qualquer descumprimento gera investigação, discussão, votação e até punição. Se o compositor Gonzaguinha disse numa canção que mesa de bar é um exemplo de amigos em pleno exercício de democracia, essa mesa é muito mais que isso, é um parlamento que prova que o anarquismo pode dar certo.
Na posição menos privilegiada em relação à bela vista da ponta do Cabo Branco e do verde que chega a doer das águas de Tambaú, são dispostas três mesas, nunca mais que quatro, nunca menos que duas. Então por volta das nove da manhã os primeiros passageiros da mesa começam a chegar, digo passageiros porque a rotatividade, a ordem da chegada e da saída seguem todo um ritual ditado por uma série de fatores que vão desde a saúde, o humor da cônjuge, o resultado do futebol, o trabalho e, principalmente, a falta dele. A diversidade humana é tanta que é humanamente impossível discorrer sobre todos sem causar uma tsunami de laudas, portanto vamos nos ater as personagens mais constantes, pois todas são igualmente interessantes, todas, sem a menor exceção. A mesa só cria sua personalidade quando atinge o quórum de no mínimo três membros da confraria, mas só entra no seu apogeu quando conta com oito, dez e até doze ao mesmo tempo desenvolvendo temas em uníssono ou em desencontradas conversas paralelas. As nove e meia da manhã a mesa já não está mais vazia, o primeiro membro da mesa já tomou seu assento enviesado na quina, abriu a carteira de cigarros para as primeiras baforadas enquanto a garçonete já se aproxima com sua toalhinha forrando seu espaço e com um copo descartável contendo água e detergente pra lhe servir de cinzeiro. Depois de cumprido o rito inicial, ante a tentativa de pergunta da garçonete já vem a resposta preventiva, agora não. Ele fica divagando entre a fumaça como se estivesse apenas exercitando sua mente e afiando sua língua para mais tarde desferir certeiros golpes do mais fino humor mulato, pois não chega a ser negro e também não tem nenhum preconceito quanto às vítimas. São tiradas curtas e certeiras como “jabs” que vão direto no fígado. Logo em seguida chega mais um, este parece que tem a missão solene de dizer que já passou das dez e, portanto, já podem tomar a primeira. Então a garçonete bem solicitamente aproxima-se com o isopor de gelo, o dosador e duas garrafas de whisky, pois lá parece que é proibido repetir assuntos e marcas de bebidas. Depois chegam o terceiro e o quarto, quase sempre chegam em dupla mesmo. Apesar da grande quantidade de jornalistas na mesa, aposentados ou não, a conversa nunca segue uma pauta determinada, mas nunca falta matéria para o debate, nem falta disposição, pois nas contendas mais acaloradas a entonação de alguns é de humilhar qualquer decibelímetro. Num dia normal, se é que se pode chamar algum dia de normal ali, o que mais se consome é a paciência do próximo, mais até do que as incontáveis doses de cachaça, whisky e as garrafas de cerveja, todas bem separadas em comandas individuais e intransferíveis.
A mesa tem um frequentador bem peculiar, o mais assíduo, um de poucas palavras, pois as pronuncia com uma certa resistência intelectual, mas quando lançadas se tornam geniais frases inteligíveis que ganham a força de uma arma disparadora de risos quando teleguiadas pelos mais espirituosos. Algumas de suas eloquentes onomatopeias já se tornaram até chavões, mais repetidos que o refrão do bolero “Quizas, Quizas, Quizas”, o famoso talvez. O seu “talvez” pronunciado como unguento para as mazelas do dia-a-dia ganha ares de Água Rabello, pois serve pra tudo, pra responder, pra perguntar, ironizar, xingar e até para propor uma mudança de assunto. Uma certa vez alguém perguntou se ele era louco, ele apenas sorriu e disse:
-Talvez, agora você é!
Depois de uma gargalhada da mesa, sim da mesa, pois ela ganha corpo e alma quando todos estão em seus lugares e tem reações como se fosse um único organismo.
A mesa também não fica a dever nada às grandes áreas da ciência, pois está sempre bem representada pelo seu corpo docente composto por professores, médicos, químicos, publicitários, políticos, músicos, poetas, engenheiros, humoristas e magistrados. Uns mais assíduos do Pé na Areia do que do próprio local de trabalho como denunciam sempre os que já não labutam.
Ali entre tragos e lorotas sempre tem o momento consulta médica, pois o discípulo de Hipócrates que frequenta a confraria é um educado senhor que usa seu intelecto para estudar, refletir e especular acerca de ideias, de modo que esse uso, possa trazer uma relevância social e coletiva. O doutorzinho é um sujeito de estatura baixa e atarracada conservando uma vitalidade que já abandonou os da sua idade. Homem viajado e cheio de histórias do continente negro, do velho e do novo mundo. Entre as suas consultas, que humilham o SUS pela presteza, atenção e precisão de diagnóstico, ele prescreve umas dose de picardia e de causos que se for verdade a máxima de que rir é o melhor remédio, o paciente já está curado, a não ser que surja alguma polêmica. Aí sim o velho engenheiro solta sua voz de tenor teimoso e mostra com quantos desafios se faz uma aposta para se desistir dela antes de qualquer chance de comprovação.
Entre todos os participantes desta associação etílica diária tem o que faz o papel de elo ou desligação, aquele que sorrateiramente consegue intermediar conversas entre os que já não se falam, aquele sujeito que é capaz tanto de unir como de separar, tanto de contemporizar como de jogar gasolina na fogueira, depedendo do dia, do seu humor e de sua percepção, ele atua para encerrar o assunto ou para dar mais longevidade a contenda, afinal o que é a calmaria da velha amizade diante da bela turbulência de uns tragos a mais temperados com ironia e mútuas desculpas no final.
Vale destacar também a presença daquele que vai só para figurar. Sua voz não é ouvida nem quando ele pede seu whisky ou sua conta, alguns desconfiam que ele seja um ser superior que consegue se comunicar com a garçonete por telepatia. Sua única forma de comunicação com os demais é o riso, entre goles ele pontua os desfechos das histórias com seu sorriso espontâneo como se estivesse ali para ser apenas claque ou para mostrar a tantos protagonistas que, num local assim, é até nobre ser plateia.
O meio dia ainda está distante, mas a mesa já fervilha. Em um canto a política corre solta com suas teorias de conspiração, só que lá não há espaço para especulações, todos são testemunhas oculares dos mais escamoteados atos políticos. Não existem porões e nem filtros que os impeçam de dissecar a política como uma lagartixa na mão de um menino perverso armado de gilete. As vísceras do poder e dos poderosos são expostas como troféu, uma espécie de vingança coletiva e inócua, já que todas as denúncias morrem na própria mesa para provar que se o poder é efêmero a conjectura de bar é então apenas um átomo de instantaneidade. No outro canto da mesa a poesia surge como contraponto e o Pé na Areia ganha uma decoração espiritual de taberna do século XVIII. São os poetas atacando com sensibilidade o ambiente outrora hostil e infértil da política miúda. Quando o poeta tira o papel do bolso para embargar sua voz em um soneto, todos fazem a maior reverência que a poesia pode receber, o silêncio atento. Em seguida as críticas são mais incentivadoras do que sinceras, mas parece que há uma trégua de ânimos durante a declamação. porém essa trégua só dura até alguém suscitar um poeta do passado como o maior de todos, aí o ruído de feira voltar à tona como se fossem torcidas organizadas da literatura. Fernando Pessoa e Augusto dos Anjos agora disputam um fla-flu poético e imaginário numa espécie de RPG da terceira idade onde os lances, os dribles e as firulas são criadas e narradas pela própria torcida e sempre termina num empate sem gols onde os dois lados saem com a convicção de ter vencido por goleada.
Então os ponteiros do relógio já estão querendo se encontrar no número máximo do mostrador e alguns já sentem o peso do tempo e, principalmente, dos goles. O primeiro a chegar quase sempre também é o primeiro a sair e sai sem cerimônia e com um sorriso de quem já não deixou tanto tempo para a vingança dos demais. A primeira batida em retirada parece ter o poder de ditar uma tendência, mas não, é apenas a realidade de quem já não está mais na alvorada da vida e precisa antecipar o crepúsculo para o meio dia. Parece que a experiência é pré-requisito para a mais difícil das disciplinas de botequim, saber parar. Pois bem, assim como chegaram, começam a retirada, sem alarde, a não ser um ou outro oriundo de mais um aumento no preço da bebida ou do revoltante valor do vinagrete cobrado por fora como se fora um quilo de ova de esturjão. Neste momento os poetas ainda resistem mais um pouco, juram que vão aproveitar a calmaria que começa a se instalar para compor, mas as palavras pastosas denunciam que são apenas boêmios vespertinos que adentram a tarde como se esta fosse uma madrugada banhada de sol. A mesa ainda resiste, ainda há vida inteligente e, o que é melhor, altiva. Porém aos poucos as conversas vão se aninhando e ganhando contornos de êxodo. os mais resistentes sugerem uma nova trincheira etílica onde todos vão encontrar a Canaã dos Bêbados, um lugar utópico onde há bebida boa e gelada pela metade do preço dali, tira-gostos deliciosos quase de graça, tudo isso servido por nereidas e ninfas com sorrisos e ancas largas. Porém pouquíssimos embarcam neste convite, pois sabem que ao tirar o pé do Pé na Areia jamais poderão levar para outro bar o que eles vêm buscar todo dia ali, o espírito de botequim, aquilo que faz todo mundo voltar a ser moleque, independente da idade, da patente social ou intelectual. Assim na incerteza da vida todos se vão com uma única certeza, a de que amanhã estarão de volta para renovar este espírito, misturando cana com cerveja, poesia com política, humor com amizade e mentira com verdade. Porém se alguém duvidar que lá o crepúsculo é ao meio dia, eu respondo com toda convicção, talvez.

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2 Comentários

  • Reply Marconi de Souza Ribeiro 10 de agosto de 2019 at 18:31

    Que texto Marcelo, parabéns, sou seu fã, sou seu admirador. Deus te abençoe!

  • Reply João Carlos Miranda 12 de agosto de 2019 at 00:47

    Fiquei com vontade de pegar uma mesa próxima e observar essa confraria.

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