opinião

O ESTOICISMO, A COMPAIXÃO E O PADRE LANCELLOTTI 

7 de janeiro de 2024

 

Por GILBERTO CARNEIRO

“É FÁCIL DESCER AO INFERNO”, escreveu o poeta romano Virgilio há cerca de 20 séculos. Nos seus tempos, acreditava-se que o portão do inferno se localizava na cratera de Averno, próxima à cidade de Cumas, na Itália. Cada época tem suas entradas para o reino da dor. Hoje, cerca de meia hora de pesquisa virtual é o suficiente para acessarmos um painel detalhado das desgraças da humanidade. Notícias sobre o terremoto que devastou Lisboa, no século XVIII, levaram semanas para chegar até outras partes da Europa; todavia, atualmente as tragédias transcendem o espaço e caçoam do tempo, pois jamais as dores da espécie estiveram tão interconectadas. Esses infortúnios são do conhecimento da civilização em tempo real, basta um click e nos transportamos para o conflito entre israelenses e palestinos na Faixa de Gaza responsável, em 90 dias de guerra, pela morte de 22,3 mil pessoas, entre as quais, 9,6 mil crianças  e 6,7 mil mulheres; seja na Ucrânia, outro conflito insano que perdura por 18 meses aproximando o número de mortos e feridos para 500 mil vítimas; seja ainda no Brasil, país conhecido por suas desigualdades sociais aonde 33 milhões de pessoas passam fome e outros 70 milhões vivem em situação de insegurança alimentar. 

Por isso, a vida atual é um desafio frenético a todas as mentes praticantes da paixão. Como, então, viver em um mundo doloroso sem cair no desespero e sem desistir da luta? qual deve ser o nosso comportamento e postura diante de fatos tão chocantes ante a constatação inequívoca que a onipresença da miséria humana faz da compaixão uma virtude potencialmente paralisante? Assim, ao pensar no drama das criancinhas mortas na Faixa de Gaza ou na quantidade de pessoas que passam fome no Brasil, você chega à conclusão que a existência humana é apenas sofrimento e desgraça. E o sofrimento não afetará apenas você, mas sua família e amigos. Logo, a compaixão terá resvalado pelas barrancas do traiçoeiro rio da dor, deixando que o sofrimento vença o duelo. Por outro lado, renunciar à piedade seria amputar uma parte importante do que nos faz humanos.    

Considerada a maior de todas as virtudes por religiões como o budismo e o hinduísmo, a compaixão é a capacidade humana de compartilhar os sentimentos alheios – principalmente o sofrimento, a dor vivenciada pelas outras pessoas, não a nossa. O Cristianismo também aponta a compaixão como uma virtude capital – Jesus fincado à cruz confortou os ladrões crucificados ao seu lado e compadeceu-se até mesmo de seus algozes. No entanto, no século I a. C. Marco Túlio Cicero escreveu: ”por que sentir piedade, se em vez disso podemos simplesmente ajudar os que sofrem? Devemos ser justos e caridosos, mas sem sofrer o que os outros sofrem”. Cicero foi um grande representante do estoicismo, corrente filosófica que valorizava mais as ações do que as paixões. Agir pelo bem da humanidade, portanto, seria mais útil do que lamentar-se em nome dela. Spinoza, no século XVII, também condenou a compaixão como um vício pouco filosófico. “A piedade, em um homem que segue os ditames da razão, é um mal inútil”.    

Afogados na enchente das dores alheias, podemos facilmente cair no desespero e na inação. Por isso a piedade tem uma reputação conturbada na história do pensamento: se alguns a apontaram como o alicerce da ética e da moral, outros viram nela uma armadilha, um mero acréscimo de tristeza a um universo já suficientemente amargo. Todavia, vale lembrar que as virtudes, para funcionarem, devem se encaixar umas às outras: quando aliada à temperança, o sentimento de comiseração pelas dores do mundo pode ser um dos caminhos que nos afastam da cratera de Averno. Dosando com prudência uma compaixão potencialmente infinita, é possível sentirmos de forma mais intensa a felicidade, a nossa e a dos outros, – como alguém que se delicia com um gole de água fresca, lembrando-se do deserto que arde lá fora.

A postura de adotar atitudes enérgicas para combater uma situação de injustiça é uma opção de alcance prático maior do que a comiseração misericordiosa da inação e neste contexto se insere a árdua missão desempenhada pelo estoico padre JULIO LANCELLOTTI no seu trabalho incansável de combate a fome junto à população em situação de rua. A presença de padres considerados pop star dentro da igreja não é condenável, mas é absolutamente injurioso quando esses fenômenos de mídia que se vestem e se comportam guiados muito mais pela ostentação e vaidade pouco fazem pelos mais pobres e, pior, silenciam diante da postura perseguidora adotada contra aqueles padres que guiam seu trabalho em prol dos mais necessitados. E o que dizer de pessoas não apenas insensíveis ao trabalho do padre Lancellotti, mas incomodadas por enxergarem no missionário o aborrecimento que causa as pessoas com quem convive, seres humanos invisíveis, mas que mesmo excluídos de qualquer convívio social incomodam a sociedade pelo simples fato de existirem. 

Uma realidade é a compaixão vazia, aquela que não redunda em ações concretas. Outra é a maldade, a ação frenética para destruir aqueles que pensam e agem imbuídos por um sentimento de fraternidade e compaixão efetivo. A compaixão é um sentimento que deve estar inato às ações, ou mesmo o contrário, pois o mero sentimento de “pena” poderá resvalar para um comportamento de representação artificial da realidade, mero simulacro, mero comportamento hipócrita, pois como escreveu o filósofo alemão Shopenhauer: “A compaixão é um fenômeno assombroso e cheio de mistério, pois apaga a linha fronteiriça que, aos olhos da razão, separa um ser do outro ser, borrando os limites entre o que eu sou e o que eu não sou. A compaixão é a fonte de toda a justiça e de toda a moral; e o ser que não a conhece está excluído da própria humanidade”.  

 

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1 Comentário

  • Reply Bonifácio Rocha de Medeiros 8 de janeiro de 2024 at 16:18

    O padre Júlio é o profeta dos nossos tempos, não fugindo da regra, incomoda aos egoístas, gananciosos e nazistas. Parabéns Dr. Gilberto por tão lúcido e justo escrito.

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