Por GILBERTO CARNEIRO
MALU é um nome fictício, mas retrata uma situação real. Malu é uma criança pobre, de apenas dez anos, que mora no interior da Paraíba. Malu está gravida. Sua gravidez foi descoberta no banho quando percebeu que saía leite dos seus seios e gritou desesperada pela mãe. Foi quando o estupro praticado pelo padrasto veio à tona. A gravidez passava de 22 semanas.
Pela legislação vigente, Malu, com autorização da sua genitora, poderá fazer o aborto legal, mas não se o Projeto de Lei 1904, em trâmite na Câmara dos Deputados, for aprovado. Se for, o destino de Malu será outro, estará obrigada, com dez anos de idade, a ter o filho decorrente do estupro por ter ultrapassado o marco temporal de 22 semanas estabelecido no PL, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante, do PL/RJ. O trocadilho da sigla não é mera coincidência.
A famigerada propositura, que tem o apoio da bancada evangélica, abre margem para vetar qualquer procedimento de aborto acima dessa idade gestacional e equipara qualquer procedimento de aborto ao crime de homicídio simples, condenação que poderá alcançar 20 anos, enquanto a pena do estuprador poderá chegar, no máximo, a 10 anos.
E o mais grave, a proposta legislativa tramitará em regime de urgência, sabe por quê? Por conta de uma manobra do presidente da Câmara, o rei Arthur e os Cavaleiros da Távola “Quadrada”, que submeteu ao Plenário o regime de tramitação do PL sem o incluir em pauta, uma jogada de baixo nível, mas considerada um xeque mate na linguagem do jogo bruto da política. O resultado prático da manobra é que o PL tramitará sem passar pelas comissões, aniquilando assim qualquer possibilidade de discussão do tema na Casa Legislativa. Então, que a sociedade faça o debate.
O projeto impõe tempo limite para a interrupção da gestação em casos de estupro e risco de vida da gestante, e o absurdo, propõe pena à vítima. Artigo da professora da FGV Eloisa Machado, publicado no UOL, traz uma realidade que não gostaria de enxergar: – ” seis em cada dez mulheres estupradas são crianças e sete, em cada dez, são estupradas em casa, por pais, padrastos, tios, avôs, cunhados. Saber isso dói, dói muito e impor limite temporal para acessar serviço de saúde no caso de estupro é jogar o tempo contra a vítima”, revela a pesquisadora.
O fato, a triste realidade que os cegos por preceitos religiosos extremos com pitadas de hipocrisia não querem enxergar é que a criança tem que superar, muitas vezes sozinha, o desafio de denunciar o “homem da casa”. Nestas situações, a mulher geralmente é desacreditada, as vezes pela própria família, dificultando seu acesso ao serviço público do aborto legal.
Não fosse o bastante a nocividade moral da proposta, há um requinte de crueldade na pena prevista para a vítima de estupro que interromper a gestação acima do prazo estipulado, bem maior que a do estuprador, por isso a alcunha de “PL do Estuprador”. O relator do projeto teve a cara de pau de dizer publicamente que o objetivo é testar os compromissos do presidente Lula com a bancada evangélica. Usa a dor de crianças como uma barganha política barata.
Barata não, cara. Estamos falando de misoginia e perversidade, afinal parte dessa turma tem como herói um coronel estuprador, mas é também sobre dinheiro, sobre muito dinheiro. A moeda de troca por mais emendas parlamentares e pelo controle do orçamento em ano eleitoral é a dignidade de crianças. Não honram as calças que usam, compradas com os penduricalhos que pagamos. Na bancada paraibana o principal defensor desta escrotice é o deputado Agnaldo Ribeiro, do PP.
Os parlamentares que usam o bom senso como fundamento da razão precisam agir, e não se trata aqui de postar indignação nas redes socias, para isso já temos muito ativistas de sofá. O agir é no sentido de ação, de articulação na Câmara e mobilização. Muitos deputados de esquerda ficam na zona de conforto porque temem qualquer pauta que não tenha o apoio majoritário da população.
Preferem o silêncio às perguntas certas. No caso em questão, a pergunta não é se as pessoas são contra ou a favor do aborto – até porque, vamos ser sinceros, ninguém é a favor do aborto, nem a pessoa que o realiza. O aborto acaba sendo uma saída dura para evitar a destruição da própria vida em muitas dimensões – física, psicológica e social.
As perguntas certas são: você é a favor de que crianças estupradas sejam obrigadas a manterem a gravidez do estuprador? você é a favor de que mulheres estupradas que realizem um aborto legal sejam presas pelo dobro de tempo que o próprio estuprador? você seria a favor de que sua mãe, irmã, filha ou esposa, caso passem pela terrível situação de ser estupradas, sejam obrigadas a carregarem a gravidez e que, se tentarem realizar um aborto já garantido pela lei, sejam presas 20 anos por homicídio?
Desprendido da realidade, dos princípios constitucionais, do interesse público e do pensamento progressista esta Legislatura é uma das piores das últimas décadas. É hora da sociedade reagir. Um Legislativo que pensa apenas na própria sobrevivência à custa da dor de crianças, não merece respeito, nem deferência, nem REELEIÇÃO.
Malu carregará para o resto da vida sequelas físicas e psicológicas da violência sexual que sofreu. Sua infância lhe foi roubada, mas ao menos ainda teve oportunidade de realizar o aborto legal sem ter que ir para a prisão no lugar do estuprador.
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