Por GILBERTO CARNEIRO
PODERÍAMOS estar vivendo hoje sob uma ditadura militar. Para compreender a ameaça que pairou nas nossas cabeças e o que nos salvou é preciso paciência para a leitura do artigo abaixo do renomado jornalista Bruno Pereira, da Revista Piauí.
“OS BRAÇOS para trás e as mãos entrelaçadas ajudavam-no a manter a postura ereta. Estava vencido, mas não rendido. No Palácio da Alvorada, à frente do espelho d’água que o separava das centenas de apoiadores, ele rompeu o silêncio de quarenta dias, desde a sua derrota nas urnas para o presidente Lula. Era 9 de dezembro de 2022, sexta-feira, 16h30. Jair Bolsonaro discursou por 16 minutos, mesclando lamento e esperança, em uma ambiguidade calculada. Disse frases como “vamos vencer”, “ponto final somente com a morte”, “tudo dará certo no momento oportuno” e “cada minuto é um minuto a menos”.
Desde o dia 19 de novembro passado, o discurso de Bolsonaro de dois anos atrás ganhou enorme clareza. Enquanto oferecia iscas de esperança aos apoiadores – “não é fácil você enfrentar todo um sistema”, mas “nada está perdido” –, alguns de seus principais auxiliares, quase todos militares, tramavam um golpe de Estado que incluía um plano terrorista: matar o presidente Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Os métodos dos assassinatos: uso de artefato explosivo ou envenenamento em evento oficial e público, ou administração de substância química para causar colapso orgânico em ambiente hospitalar.
É a primeira vez, desde que o Brasil voltou ao regime democrático, que se descobre um plano golpista gestado na alta cúpula do poder em Brasília. Os envolvidos na articulação não são lobos solitários, nem malucos, nem aloprados do baixo clero, mas gente que transitava pelos ministérios, frequentava o Palácio da Alvorada e trabalhava no Palácio do Planalto. E tudo isso acontecia com a participação ativa de Bolsonaro: ele fez reuniões com golpistas, recebeu relatos sobre a evolução dos preparativos para o golpe, excluiu algumas autoridades da lista dos que seriam presos, discutiu as datas mais apropriadas e – na manhã do dia 9 de dezembro de 2022 – mudou trechos do decreto que ficou conhecido como “minuta do golpe”.
No relatório final de 884 páginas, a Polícia Federal descreve as investigações e chega a uma conclusão categórica: Bolsonaro “planejou, atuou e teve o domínio de forma direta e efetiva dos atos executórios realizados pela organização criminosa que objetivava a concretização de um golpe de Estado e a abolição do estado democrático de direito”. O relatório, no qual o nome de Bolsonaro aparece 533 vezes, ainda informa que o golpe só não foi perpetrado “por circunstâncias alheias à vontade do então presidente da República”.
A principal “circunstância” é a posição do comandante do Exército, o general Marco Antônio Freire Gomes, que não avalizou o golpe – aparentemente, mais por receio de que desse errado do que por convicção democrática. Chegou a alertar Bolsonaro de que poderia mandar prendê-lo se tentasse um golpe, mas, ao mesmo tempo, tomou parte de reuniões sobre a trama, permitiu que seus subordinados articulassem contra a legalidade, manteve a massa golpista acampada nos quartéis para servir como ponto de apoio popular ao golpe e nem sequer puniu os oficiais que assinaram uma carta pública em favor do golpe.
As investigações mostram a participação especialíssima dos “kids pretos”, como são chamados os integrantes das Forças Especiais, tropa de elite do Exército. Os kids pretos formam o grupo do Exército em que Bolsonaro mais confia. Nos seus tempos de Academia Militar das Agulhas Negras, ele tentou ser um kid preto. Fez o curso de paraquedismo, primeira etapa da formação, mas foi reprovado – duas vezes – na prova de ingresso. Uma reportagem de Allan de Abreu publicada pela Piauí em junho do ano passado mostrou que Bolsonaro convocou 26 kids pretos para postos de alto nível durante seus quatro anos de governo. Pelo menos dez tiveram atuação direta na trama do golpe.
A seguir, a crônica dos acontecimentos, segundo os dados públicos e as revelações trazidas pela investigação da Polícia Federal:
5 DE JULHO DE 2022, TERÇA-FEIRA_Em reunião no Palácio do Planalto, gravada e depois tornada pública por decisão judicial, o golpe – eufemisticamente tratado como “virar a mesa” – está em debate. Sentado à ponta da mesa, o presidente Jair Bolsonaro comanda a conversa com 33 auxiliares. O general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, relata que conversou com um dirigente da Agência Brasileira de Inteligência para infiltrar agentes nas campanhas eleitorais, e avisa que a ação é sigilosa. “Eu peço pra não vazar.” Bolsonaro interrompe: “Eu peço ao senhor que não prossiga na tua observação. Se a gente começar a falar ‘não vazar’, esquece. Pode vazar. Então a gente conversa em particular na nossa sala sobre esse assunto”.
A certa altura, o presidente, que há muito tempo agitava o fantasma da fraude eleitoral nas urnas eletrônicas, prevê que o STF daria a vitória a Lula – “não tenho prova de muita coisa, mas não tenho dúvida” – e pela primeira vez menciona a palavra golpe, apresentada como uma alternativa indesejada, mas inevitável. “Alguém tem dúvida que vai acontecer no dia 2 de outubro? Qual o retrato que vai tá às 10 da noite na televisão? Alguém tem dúvida disso? Daí a gente vai entrar com um recurso no Supremo Tribunal Federal? Vai pra puta que o pariu, porra! Ninguém quer virar a mesa, ninguém quer dar o golpe, ninguém quer botar tropa na rua, fechar isso, fechar aquilo. Nós tamo vendo o que tá acontecendo. Vamo esperar o quê? Todo mundo vai se foder.”
Depois da fala do presidente, o general Heleno diz que era preciso agir antes das eleições. “Não vai ter revisão do VAR. Então, o que tiver que ser feito tem que ser feito antes das eleições. Se tiver que dar soco na mesa é antes das eleições. Se tiver que virar a mesa é antes das eleições.” O general Heleno, cujo histórico golpista se construiu durante a ditadura militar (1964-85), completa: “Eu acho que as coisas têm que ser feitas antes das eleições. E vai chegar a um ponto que nós não vamos poder mais falar. Nós vamos ter que agir. Agir contra determinadas instituições e contra determinadas pessoas. Isso pra mim é muito claro.”
O general da reserva Mario Fernandes, que participa da reunião na condição de ministro substituto da Secretaria-Geral da Presidência e também é um kid preto, está ansioso por uma ação. Sentado à mesa do lado direito de Bolsonaro, ele pede a palavra. Diz que não se pode mais esperar e questiona se o golpe será nos moldes do ocorrido em 1964. Voltando-se para Bolsonaro, pergunta: “Como o senhor bem disse, antes que aconteça [a eleição presidencial]. Porque no momento que acontecer, é 64 de novo? É uma junta de governo? É um governo militar?” E continua: “Então, tem que ser antes. Tem que acontecer antes. Como nós queremos. Dentro de um estado de normalidade. Mas é muito melhor assumir um pequeno risco de conturbar o país pensando assim, pra que aconteça antes, do que assumir um risco muito maior da conturbação no day after, né?”
(Em um dos relatórios produzidos pela Polícia Federal, os agentes analisaram em detalhes o vídeo da reunião, cuja duração é de 1 hora e 33 minutos, e afirmaram: “A descrição da reunião de 5 de julho de 2022, nitidamente, revela o arranjo de dinâmica golpista, no âmbito da alta cúpula do governo.”)
18 DE JULHO, SEGUNDA-FEIRA_Bolsonaro convoca dezenas de embaixadores para uma reunião no Palácio da Alvorada. Na ocasião, faz um discurso de 46 minutos em que ataca Lula, então líder nas pesquisas eleitorais, critica ministros do STF, exibe uma apresentação em que repete suspeitas infundadas de fraude na eleição de 2018 e coloca em dúvida a segurança das urnas eletrônicas. A intenção é clara: obter apoio internacional para uma virada de mesa na eleição que ocorreria dali a três meses.
(Um ano depois, em 30 de junho de 2023, o Tribunal Superior Eleitoral condenou Bolsonaro por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação ao se reunir com os embaixadores. A pena é inelegibilidade até 2030.)
2 DE OUTUBRO, DOMINGO_Lula e Bolsonaro recebem as maiores votações e se qualificam para o segundo turno. Bolsonaro ficou à frente no Sudeste, no Centro-Oeste e no Sul. Lula levou a dianteira no Norte e no Nordeste, onde obteve uma votação enorme: quase 67% dos votos.
4 DE OUTUBRO, TERÇA-FEIRA_Informado sobre as maquinações para “virar a mesa”, o tenente-coronel Sergio Ricardo Cavaliere de Medeiros conversa com Mauro Cid, o ajudante de ordens de Bolsonaro e, também ele, um kid preto. Cavaliere está preocupado com os riscos de uma operação golpista. A certa altura, diz: “Espero, sinceramente, que vocês saibam o que estão fazendo.” Cid responde, premonitório: “Eu tb… Senão estou preso.” Em seguida, Cid admite que a eleição transcorreu com lisura. “Nenhum indício de fraude.”
1 Comentário
Pensar em fazer Bobagem não é crime. Qualquer cidadão de bom senso, sabe que a conjuntura mundial é outra, ou seja, caso tivesse sido posto em prática, seria derrotado. O que estão fazendo hoje é criar factoides para esconder a grave crise econômica e financeira do Brasil. O dólar já passou dos seis reais e em breve chegará aos sete reais, isso sim é preocupante.