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O VELHO, O MENINO E A CANÇÃO DO BEM QUERER

27 de fevereiro de 2021

O trovão é o rugido do céu anunciando ao homem de pouca fé que Deus não esquece dele, ensinava minha vó Olinta, mãe da minha mãe, já velhinha, pernas de cambito, boca murcha e cocó prendendo os cabelos.

Ela morava numa casinha na Rua do Ferreiro, casinha de um cômodo só, de cama na sala e fogão perto da cama. Fogão não, fogareiro de brasa que ela usava para assar costela de porco, para comer com os netos.

Vó Olinta morreu no começo de 60. Eu tinha nove anos e não chorei. Lembro de ter ficado no meio da rua com os outros moleques a brincar, enquanto lá dentro se fazia a sentinela.

Os filhos choraram muito, eu chorei muito tempo depois com saudade das suas costelas de porco assadas na brasa e comidas com farinha seca. Saudades também do feijão que ela nos dava em pequenos bolos que chamava de “capitão”. E do seu carinho gracioso, sem carecer de contra partida, o carinho de vó, de mãe duas vezes.

Por isso o trovão me acompanhou. Era uma forma indireta de me lembrar dela.

O trovão das invernadas, das caminhadas por veredas estreitas do meu sertão inesquecível, das roças de milho e feijão de corda que papai plantava para encher o bucho da meninada e das aventuras de menino que só aos meninos é dado o direito de viver.

A gente não tinha medo de trovões. Papai ensinava: O trovão não faz medo. O relâmpago vem antes. O trovão é apenas o efeito do relâmpago, o estrondo do que veio antes.

Na roça da Timbaúba papai se demorou além da conta, perdeu a noção do tempo, se atrasou. Quando deu conta de si, o sol estava se pondo e o riacho Macapá, de cheia, jorrava água de uma ribanceira a outra. Bichos mortos boiando na água e troncos de árvores sendo levados como coisas miúdas, transformavam o rio numa fotografia de medo.

O drama de Seu Miguel: dormir por ali ou atravessar aquele mundo de água com a criança a depender dos seus braços?

Tomado de indômita coragem, jogou o sambudo nas costas e se jogou no riacho. Nadou com força, o menino espantado, porém confiante, segurado no seu pescoço, braçadas contra a força da água violenta, até que a outra margem se ofereceu como porto seguro.

Dali saíram os dois, o velho e o menino, andando pela estrada escorregadia, até chegarem à Rua do Cancão, onde Emília os esperava  cantando a canção do bem querer ao som do cavaquinho de Zé Birrim.

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3 Comentários

  • Reply Delfos 27 de fevereiro de 2021 at 10:46

    Nesses dias em que o nosso futuro
    é uma grande incógnita, como é
    bom lembrar de dias felizes de um
    passado que gostaríamos de poder
    viver novamente.

  • Reply RÔMULO ANTÔNIO 27 de fevereiro de 2021 at 11:55

    Hoje você está muito mais inspirado TIão! Esse exílio está ruim prá você e muito bom pros leitores! O que acabei de ler, me reporta aos tempos de menino na minha querida Conceição, era desse jeito! Abraço

  • Reply Zé Adalbero 1 de março de 2021 at 07:16

    Ou Tião, sem encontrar palavras que façam jus ao que escreves, me contento em dizer ; Sou eu fã. Forte abraço !

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