Por GILBERTO CARNEIRO
POSSUO uma identificação muito forte com a SEMANA SANTA. Logo me transporto para a minha infância, quando à noite, furtivamente, escapulia para ir acompanhar os PENITENTES, conhecidos como: “os Alimentadores de Almas”.
Defendo que as instituições religiosas e os poderes públicos adotem posturas de preservação e fortalecimento destas tradições, tornando-as patrimônio vivo evitando que os novos costumes joguem para a vala do esquecimento estes movimentos tão importantes para a nossa cultura.
Os penitentes são homens que se reúnem na véspera da Sexta Feira Santa e saem pelas estradas escuras no gélido da madrugada, todos vestidos com uma “mortalha” branca rezando em encruzilhadas, cemitérios e igrejas entoando cantos para alimentar as almas daqueles que morreram sem ter seus pecados perdoados. Ainda hoje existem nos recônditos da Bahia, nas terras aonde tive a felicidade de nascer e, embora desconfigurados um pouco do seu propósito original, mantém-se a tradição, sem evolução na democratização do ingresso de mulheres, infelizmente.
“Reza irmão das almas, reza pelo amor de Deus, reza pelo amor de Deus”, essa era a cantiga que ressoavam sempre seguido do som da “matraca”, espécie de instrumento musical utilizado na Semana Santa, feito de madeira, que quando sacudido produz um som genuíno e característico que o reconheço até no Jardim do Getsêmani.
À época que acompanhei suas apresentações quem comandava o grupo era S. Fulô, compadre do meu pai. Alto, moreno, impossível não reconhecê-lo, mesmo com a exigência da proibição de mostrar o rosto do integrante, pois um dos sacramentos ordenava que o sudário protegesse o corpo dos pés a cabeça.
Mas tudo não era ordem, pois vez ou outra apareciam os gaiatos para quebrar um pouco a seriedade do momento. Uma certa noite estávamos na igrejinha de D. Sinhá à espera dos penitentes. Aguardávamos desde as 22 h e quando apareceram passavam das três da madrugada. De repente ouvi o som da matraca e comecei a gritar -” estão chegando, estão chegando”. Entraram em fila indiana e foram se distribuindo no espaço apertado em frente ao altar em paralelo de três a três. E rezaram, rezaram, rezaram até o amanhecer. Eu ficava brechando a fresta da mortalha para tentar identificar o rosto dos componentes que, por sua vez, me olhavam com recriminação. E foi então que aconteceu.
Ao final levantaram-se para ir embora, os últimos três cedendo passagem para o líder e os demais. Quando chegou a vez destes últimos, ao se locomoverem perceberam tardiamente que as mortalhas estavam amarradas umas às outras e então até a mais rigorosa das beatas não aguentou a cena e colocou a mão na boca disfarçando o sorriso ao observar os três penitentes descobertos, diante das mortalhas desprendidas dos seus rostos atônitos. Do outro lado, ouvi logo as gargalhadas espalhafatosas e ao me virar estavam lá, os travessos Zé do Firme e Valdinho, com os dedos apontados, gritando: – “é o Domingo do Preto, o Filó e o Nilton cego”.
1 Comentário
Nossa, fiz uma grande viagem no tempo! Eu sentia uma mistura de curiosidade, respeito e muito medo.