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Por quem os sinos dobram?

30 de novembro de 2018

Aldo Lopes de Araújo

A primeira vez que vi Paulo Mariano foi em Manaíra. Eu tinha uns sete anos e corri para debaixo da cama com medo daquele homem que era alto e magro e além de cabeludo e barbudo tinha a fama de ateu e comunista. Naqueles meados da década de 60 — quando os alunos eram obrigados a fazer ordem unida, cantar o Hino Nacional com a mão no peito e rezar a ave maria antes da aula — se defrontar com um ateu e ainda por cima comunista era o mesmo que topar com o papafigo num beco sem saída, se defrontar com o Cão do segundo livro. Nesse dia Paulo dirigia um jipe sem capota, e carregava num reboque uns ossos enormes que tinham sido encontrados durante as escavações da lagoa e disseram ser partes do esqueleto de um animal gigante que há milhares de anos andava por essas bandas.

Algum tempo depois tomei conhecimento de que Paulo saltava do avião em pleno vôo e caía no chão vivinho da silva. Num desses saltos ele acabou caindo em Princesa e não quis mais voltar para o Rio de Janeiro, ia tocar a vida de cabeleira ao vento, guerrilheiro romântico que a ditadura certamente se esquecera de procurar. Passou a dividir o seu tempo entre leituras e conversas com o povo, colhendo matéria-prima para escrever seus livros. Paulo Mariano contagiou corações e mentes de toda uma geração de jovens que tiveram o privilégio de conviver com ele.

Era um homem cordato, às vezes duro e disposto quando a circunstância o exigia, mas sem perder a ternura jamais. Tião Lucena — um dos seus grandes amigos — conta da vez em que se viu na mira de um valentão dentro de um bar e só não tomou no blog porque Paulo sacou uma pistola 45 e enfiou o cano da bicha na boca do sujeito. Virava uma fera na defesa dos seus amigos. Era boêmio, intelectual, teve uns oito filhos e escreveu outro tanto de livros. Excelente cronista, historiador, especialista em tiradas poéticas e frases de efeito capazes de fazer inveja a Alcides Carneiro, Gominho e Geneci Bem. Professor emérito da cátedra da vida, foi no campus universitário do Bar do Gera que Paulo montou seu escritório e deu assistência a uma récua de bêbados, a um sem número de poetas e artistas iniciantes, ali ele emprestava dinheiro a fundo perdido, era o psiquiatra dos pobres e dos desvalidos. Foi ali que um dia ele leu o primeiro conto que escrevi. Leu e gostou e me animou a produzir mais. Foi o meu primeiro crítico literário. Sempre orientou quem estava começando, fosse cantor, poeta, pintor, repentista, aprendiz de feiticeiro, Paulo foi o entusiasta, o incentivador dos principiantes, o orientador, uma espécie de mecenas.

Acabou enveredando pela política, mas se manteve longe das duas oligarquias dominantes. Boca-preta contra rabo-de-couro, duas raças de cachorros ordinários que até hoje ainda se digladiam nas campanhas eleitorais e transformam Princesa numa praça de guerra. Pena que a experiência de vida de Paulo não tenha se revertido em benefício da cidade. Na década de 80 ele foi “o candidato do povo contra os arrumadinhos”. Os arrumadinhos se elegeram e a cidade degringolou para o atraso e o nosso herói perdeu o entusiasmo.

Sempre achei que Paulo Mariano fosse imortal. Nunca o imaginei na desconfortável condição de defunto. Morte não combinava com ele. Por isso não acredito. Como não vi seu corpo, não acredito em sua morte. Não vi não voga. Nem tudo o que o povo diz é verdade. Aquelas fotos do cemitério são fake news. Paulo nunca morreu nem tem inveja de quem morre. Esse cara underground, “gauche” na vida, nascido para desafinar o coro dos contentes, fez a alegria de muita gente com sua verve de contador de história e guerrilheiro romântico do desertão de Princesa.

Paulo fugiu do Rio de Janeiro no auge da ditadura militar, quando era funcionário do IAPB (Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários). Perdeu o emprego por abandono de cargo, foi o que disseram na repartição. Que crime ele teria cometido? Em sua ficha no Departamento de Ordem Política e Social — DOPS — encontrada do Arquivo Morto de Realengo, em 1993, por um advogado da família que pleiteava sua anistia, constava a informação de que ele “foi visto no comício da Central do Brasil, do dia 13.03.64, aplaudindo os oradores comunistas”.

Ao tomar conhecimento da morte de Paulo, fiz um comentário no blog do Tião e deixei assente que me recuso a ir a velórios. Não fui ao de mamãe nem ao do meu irmão e se Deus quiser nem irei ao meu. Não gosto do caráter religioso que esses carolas descendentes de portugueses dão às cerimônias fúnebres. Estou fora. E ainda mais quando se trata de um cara como Paulo, o São Paulo nosso de cada dia que aprendemos a querer bem. Faço minhas as palavras do poeta inglês John Donne, quando disse que nenhum homem é uma ilha e que a cada pessoa que morre, um pedaço da gente vai junto. Portanto, nunca pergunte por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti.

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17 Comentários

  • Reply Yuri Mariano 30 de novembro de 2018 at 06:47

    VALEU ALDO LOPES
    ESPETACULAR .

  • Reply Frutuoso Chaves 30 de novembro de 2018 at 06:53

    – Tenho o prazer enorme desse reencontro com nosso Aldo Lopes em mais um dos seus belos textos.

  • Reply Francisco Pires Rodrigues 30 de novembro de 2018 at 07:01

    Muito bom.

  • Reply Corrita 30 de novembro de 2018 at 07:54

    Merecida homenagem !
    Texto perfeito !

  • Reply 1berto de almeida 30 de novembro de 2018 at 07:56

    tião de deus!

    aldo como pessoa é um cão bravo sem coleira e amigo de outros cães como ele. mas, escrevendo, meu deus! é o “cão chupando” manga! dá um prazer da gota serena ler o que ele despeja quando abre as comportas das palavras e do pensamento sem eiras nem beiras! no meio da peãozada, alguém diria que ele é um “arrombado!” para escrever”! e não brinque não! em outros dias, por aqui mesmo, quando paulo ainda morava lá pras bandas do castelo branco e vestia a nossa roupa, esse que nós dois, aldo e eu, ainda usamos, passamos bons e alcoólicos momentos falando essas coisas que agora e aqui eu falo: que texto arretado de bom! eu, isso mesmo disse ao bom paulo mariano: se dependesse de mim, nunca daqui trocaria de roupa nem me mudaria para outra cidade, só para ler as coisas desse princesence arretado! a princesa deve se orgulhar de seus súditos! tu, tião, paulo e outros que não conheço, mas sei que beberam nessa fonte, escrevem uma porrada! paulo mariano, nesse momento, um olho aberto e outro fingindo que dorme, deve estar morrendo de tanto sorrir para acordar gargalhando! putabraço para todos!

  • Reply Antonio Dias Filho - Cajazeiras-PB 30 de novembro de 2018 at 08:21

    Narrativa que engrandece o Paulo Mariano, que para quem não o conheceu passa a admirá-lo , e mostra o talento do escritor Aldo Lopes, que o conheço desde os tempos da UFPB na década de 80 em joão Pessoa-PB.

  • Reply Miguel Lucena 30 de novembro de 2018 at 08:54

    Aldo Lopes, grande homenagem ao inesquecível Paulo Mariano.

  • Reply Danuza Mariano 30 de novembro de 2018 at 08:58

    Obrigada, Aldo Lopes, pelo texto primoroso e verdadeiro. Vi papai nessas linhas e me emocionei. Um abraço.

  • Reply Maíza Fonseca 30 de novembro de 2018 at 09:56

    Aldo Lopes, que texto!!! Tão real que nos encheu de saudades do velho amigo. Adeus PAULO MARIANO, até nunca mais!

  • Reply João Dantas 30 de novembro de 2018 at 19:28

    Texto espetacular, não conheço pessoalmente ninguém, Tião, Aldo Lopes, nem conheci Paulo, mas a rede da internet para quem sabe usar, faz agente conhecer e admirar as pessoas.

  • Reply Norman Lopes 30 de novembro de 2018 at 20:01

    Na Era dos sites e blogs especializados em em repercutir “miolo de pote”, desde a insuportável subserviência aos políticos de plantão, ler Aldo Lopes é compreender que o jornalismo chifrin da blogosfera carece de um bom texto.
    Pelo menos!

  • Reply aldo lopes de araújo 30 de novembro de 2018 at 22:27

    Para vocês terem uma ideia do talento criativo de Paulo Mariano , vou sugerir a Tião Lucena – a quem ele só chamava Bastião – para publicar o conto “Duelo ao entardecer”. Paulo desenvolve uma tensão espetacular em torno de um duelo anunciado entre Marçalzinho e Mirabeau Lacerda, mas que nunca chegou a se concretizar. Publicado num de seus livros, o texto é uma pequena obra-prima em matéria de suspense e tensão dramática. Os personagens são reais, mas o episódio é pura obra de ficção. Marçalzinho é filho de Marçal Lima e mora em Princesa. Mirabeau Lacerda, falecido recentemente, é o pai de Corrita, que nos brindou com seu comentário. Ela é professora da UFPB, campus de Areia, mora em Campina Grande e é bisneta do legendário Coronel Zuza Lacerda, o homem de Curral Velho que criou a República da Estrela em pleno sertão nordestino. No mais, é só agradecer a todo esse pessoal, Frutuoso, Humberto de Almeida, Miguel Lucena, Maíza, Antônio Dias, João Dantas, Nornan Lopes, Sales Cordeiro, os filhos de Paulo e, principalmente ao bom Tião, que cedeu este espaço às homenagens merecidas desse que em vida se chamou Paulo Cordeiro e Silva Mariano.

  • Reply Sebastião Gerbase 1 de dezembro de 2018 at 06:22

    Ainda não digeri por inteiro a ausência de Paulo Mariano, e olha que nossa amizade era recemte.

  • Reply MARIA AMELIA 2 de dezembro de 2018 at 23:04

    PERFEITO! você sempre brilhou Aldo Lopes.Quantos anos?? lembras de mim? Parabéns! adorei seu texto,vc escreve muito bem.Virou poeta.

  • Reply MARIA AMELIA 3 de dezembro de 2018 at 00:55

    Adorei seu texto,vc escreve muito bem. Perfeito! linda homenagem,voc~e sempre brilhou Aldo Lopes.Virou poeta!

  • Reply Tainá Leroy 3 de dezembro de 2018 at 17:09

    Caro Tião Lucena,

    Falo daqui da Califórnia e leio seu blog todos os dias. Linda foto, linda homenagem! O triste da homenagem é que o homenageado não pode ler e nem ver. Mas então prq homenagear?? Seria essa uma forma de colocar o choro pra fora?? Beijos! Parabéns a Aldo Lopes (papai), que além de escrever muito bem, consegue passsar sensibilidade em seus textos!

    Respeitosamente deixo minhas condolências à toda a família e ao povo princesense.

  • Reply Aldo Lopes de araujo 4 de dezembro de 2018 at 03:00

    Claro que lembro, Maria Amélia. Esquecer de uma pessoa como você , quem há-de. Muito tempo. Mas ainda estamos rolando os dados. Como disse Cazuza. Que prazer falar contigo!

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