Os últimos anos têm sido difíceis. A racionalidade jurídica vem sendo substituída por “racionalidades instrumentais”, constituída de opiniões e juízos morais. Isso atinge, diretamente, o campo da interpretação das normas e, portando, a própria significação do Direito, cuja autonomia torna-se cada vez menor diante de seus predadores tradicionais: a política, a economia, a moral (e a religião). Quando o Direito vale menos do que um juízo desse quilate, a democracia fragiliza. Direito é o quê, afinal? Tentarei explicar esse fenômeno na sequência, na última coluna de 2019.
O julgamento das ADCs 43, 44 e 54 ilustra bem essa questão. Bastou o anúncio da procedência das ações para que os descontentes corressem e, mediante racionalidades instrumentais-estratégicas, tentassem mudar o resultado obtido legitimamente. No futebol, é o famoso “tapetão”: após a derrota em campo, o perdedor tenta uma “virada de mesa”, custe o que custar. No Direito, o único que não consegue mudar nada é o último da fila: o advogado. Este joga em desigualdade de armas. Também tentarei falar disso.
Os raciocínios finalísticos são assim: primeiro, busca-se a solução que mais agrada; depois, arruma-se um modo de justificá-la. Ao gosto da opinião pessoal. Basta lembrarmos do Procurador Carlos Lima, falando na Globo News: “Escolhemos um lado…”. Lembram?
Tudo isso se agrava quando instituições de garantia agem dessa maneira. Um agir ad hoc. Há um comportamento — inadequado em termos democráticos e de paridade de armas — que vem se mostrando cada vez mais frequente no cotidiano forense.
Explico: basta uma decisão não agradar ao Ministério Público para que, então, logo articule um conjunto de juízos de conveniência (chamo a isso de juízos morais) a fim de desconstituir aquilo que já se tinha construído com uma certa solidez no campo do Direito.
Trago um exemplo recente, dentre tantos que aqui poderia citar: a Operação Calvário, deflagrada em dezembro de 2018, que resultou na recente decretação da prisão preventiva de dezessete pessoas, incluindo o ex-Governador da Paraíba, a pedido do Ministério Público da Paraíba.
Após um ano de investigações — sigilosas —, o Ministério Público aguarda o final do ano-judiciário para ajuizar medida cautelar inominada, requerendo ao Tribunal de Justiça da Paraíba a decretação da prisão preventiva de dezessete pessoas, além do deferimento de diversos mandados de busca e apreensão. Veja-se que pouca gente comenta esse assunto, misturado às notícias de natal e final de ano. Ano duro, diga-se.
Ora, isso não constitui manifesto agir estratégico? Todos sabem que este tipo de medida, adotada à véspera do recesso forense, dificulta o exercício da defesa (paridade de armas?), cujos pedidos são examinados em regime de plantão e, caso indeferidos, pautados somente após o carnaval…
Alguém dirá que tudo é mera coincidência. Mas tem mais. Consta que, apesar do longo período de investigações, o pedido de prisão preventiva se baseou, exclusivamente, no teor de delações premiadas realizadas, todas elas, por pessoas presas preventivamente, cujos acordos resultaram na liberdade provisória dos colaboradores. Esse filme já é conhecido, pois não? Então, qual é o busílis? Simples. No apagar das luzes, o MP requereu a decretação da prisão preventiva contra entendimento já assentado — e aqui reside o problema —, expressamente, pelo Supremo Tribunal Federal, que já disse que a simples palavra do delator não serve para subsidiar — plenipotenciariamente — oferecimento de denúncia e nem mesmo para a decretação de prisão preventiva. Será que os agentes da força-tarefa desconhecem essas decisões da Suprema Corte?
Ironia da coisa, na data de anteontem (24/12) o Presidente sancionou a Lei nº 13.964 (Projeto Anticrime), cujo §16 do artigo 4º estabelece, precisamente, que “medidas cautelares pessoais” e “recebimento de denúncia” não serão decretadas com fundamento apenas nas declarações do colaborador. É pouco? A nova lei apenas repete o entendimento pacífico da jurisprudência do STF.
Também consta que, em sede de habeas corpus, a defesa obteve a concessão de liminar no Superior Tribunal de Justiça (e por seguir a jurisprudência, o STJ foi muito criticado), que determinou a imediata soltura do ex-Governador da Paraíba, sob o argumento — seguindo jurisprudência sedimentada — de o que decreto prisional recorreu a “gravidade dos fatos” aliadas a um conjunto de “situações aparentes” e “elementos naturalísticos desatualizados”. É pouco? Mas já não há jurisprudência pacífica sobre isso?
Liberado o acusado, o Ministério Público — desta vez o Federal — voltou à carga com a interposição de agravo. Legítimo? A resposta é solenemente não. Um advogado pode até — como “jus esperneandi” — tentar interpor recursos já chamuscados pela jurisprudência. Pode ser multado ou enfrentar problemas éticos. Porém, o advogado não é agente político do Estado.
Mas o MP, sim. Este é o ponto, para mim, de fundamental importância. O Ministério Público — e este texto é uma ode a um Ministério Público imparcial e não estrategista — é um agente político que possui as mesmas garantias da magistratura. Por que será que o MP ganhou as garantias da magistratura? Simples. Para não se comportar como um advogado que é parte. Deve, pois, ser imparcial, como exige o Estatuto de Roma (art. 54 — incorporado ao Brasil em 2002 e muito citado nas decisões da Lava Jato) e as mais desenvolvidas democracias do mundo (EUA, Itália, Alemanha). Lhe é vedado se comportar de forma ilegal e meramente estratégica, como venho dizendo de há muito, eu que pertenci 28 anos, com muito orgulho, à essa Instituição de Alfredo Valadão, cuja função não é a de perseguir pessoas a qualquer custo e, sim, a de, como dizia Valadão, para além dos Poderes tradicionais, defender a sociedade, denunciando abusos, vindos deles de onde vierem, inclusive do próprio Estado (leia-se, o próprio MP e o Poder Judiciário). É pouco?
Como explicar o manejo de um agravo que é descabido e manifestamente contrário à jurisprudência da Corte? No âmbito do STJ, é pacífico que não cabe agravo contra decisão desse quilate. Pacífico, aqui, quer dizer: “é lei” no sentido de ser um precedente. Nada há a fazer senão aceitar o dito. Aliás, do modo como esse precedente foi construído, sequer há como fazer distinguishing.
Diante desse quadro, pergunto o que venho me perguntando: é este o comportamento (agir estratégico + pedido de prisão sem fundamento + interposição recurso descabido) que se espera de uma instituição de garantias, tal qual o Ministério Público? Aliás, o Supremo Tribunal já alertou sobre o agir estratégico de juízes e promotores (ler aqui). O caso Richa, do Paraná, é um bom exemplo do que estou falando hoje, aqui. A coisa não é nova. Por que tamanha compulsão em ignorar questões processuais penais — e isso vem sendo repetido diuturnamente — sedimentadas no Supremo Tribunal Federal?
Mas, afinal, o quero dizer com tudo isso, na última coluna do ano? Apenas uma coisa prosaica, que aqui reitero depois de décadas que escrevo sobre isso. Quero dizer e lembrar que o Direito tem um grau de autonomia. O Direito deve ser aplicado com coerência e integridade (art. 926 do CPC). Nem o judiciário e nem o MP podem surpreender. Eles são o próprio Estado. E as garantias processuais existem justamente contra esse poder estatal. O próprio Judiciário, uma vez que sedimenta jurisprudência legítima (de acordo com a CF, é claro e não contra essa) somente pode deixar de aplicar seus próprios entendimentos quando for o caso de distinguishing no caso concreto. As instituições devem proporcionar confiança. Previsibilidade. Não se pode correr sozinho e chegar em segundo lugar.
Se tenho direito a um habeas corpus, não há juízo moral ou político que possa impedir a concessão. Como Procurador de Justiça, assim procedia. É a confiança que o Direito deve passar à sociedade. Processo é garantia. É forma dat esse rei. Processo é protocolo, de aplicação obrigatória. É como o raio X do aeroporto. Ele é que garante a segurança do voo. Essa segurança não pode depender de juízos morais do manejador do raio X, se me permitem a comparação. E se há a concessão do HC dentro da lei, não há juízo-moral-de-descontentamento que pode bulir com a liberdade — seja de quem for, do mais perigoso dos meliantes ao menos perigoso.
Aproveito, aqui, para denunciar um novo fenômeno que vem se consolidando: o realismo jurídico de segundo nível. Já não basta o de primeiro nível. Explico: realismo é quando o Direito legislado acaba sendo o que o judiciário diz que é (coisa com a qual não concordo, porém, uso, aqui, para argumentar). Daí a pergunta: por que, então, o próprio judiciário — e o MP — desobedecem a esse Direito, fazendo um Direito de segundo ou terceiro nível, como se a jurisprudência fosse um palimpsesto? Por exemplo, se há entendimento pacífico de que delação isolada não comporta denúncia nem prisão e coisas assim, por qual razão então o Direito — já dito pelo judiciário — passa a ser outro, por conveniência de quem o maneja? Nessa nova fenomenologia, o cidadão — e não interessa quem seja ele — fica à mercê dos juízos morais feitos sobre os juízos morais já feitos, com o que se constroem camadas de raciocínios. Há limites? Eis a questão.
Tomas da Rosa Bustamante, professor coordenador da pós-graduação da vetusta UFMG, lembra que Joseph Raz, o mais importante positivista exclusivo vivo, escreveu já na década de 70, que o Estado de Direito (rule of law) é um princípio que existe para servir de contraponto aos riscos que a existência de um sistema jurídico gera. O risco de apropriação do Direito e sua utilização como arma política, sempre esteve presente. Isto porque o direito é capaz de oprimir. Salva e oprime. O rule of law protege o próprio Direito contra o uso distorcido dele mesmo.
Foi pensando nisso que batalhei mais um ano na busca da concretização daquilo que ajudei a colocar no art. 926 do CPC-2015: a jurisprudência dos tribunais deve ser estável, integra e coerente. Por quê? Porque necessito ter razões para acreditar que o judiciário acredita nas suas próprias decisões, que o MP será imparcial, que o Direito tem um grau de autonomia, que garantias devem ser deferidas mesmo que os agentes estatais (PJ e MP) desgostem de seu conteúdo.
Se há um pedido a ser feito para 2020, é este, que retiro de Dworkin: decisões judiciais (e isso se aplica ao MP) devem ser por princípio e não por política ou moral (nesse sentido, meus livros Verdade e Consenso, Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, Dicionário de Hermenêutica e O que é Isto – Decido Conforme Minha Consciência, entre outros). E agir por princípio quer dizer o contrário do agir estratégico, de fins e resultados. Agir por princípio quer dizer: mesmo que eu não goste do réu, tenho de lhe conceder o Direito.
Feliz 2020 a todos leitores
2 Comentários
Gostei do texto, um jurista que mostra aos leigos o beaba do direito (entenda-se o caso penal em questão que na verdade serve para os casos iguais), envolvendo todos os agentes deste: o juiz, o ministerio público, o advogado, o réu e o autor. Muito esclarecedor. E por fim o que diz nossa legislação sobre o caso.
Fia duma mãe,tião boigueiro, esse camarada é de uma inteligência avassaladoramente absurda. Ele consegue, com inteligência, destrinchar o mundo do juridiquês e explicar aos pobres mortais. Que caba bom e, de quebra, revelar o monstro de mil cabeças que se tornou o judiciário no país.