Ramalho Leite
A professora Zélia Almeida consegue ensinar economia romanceando seus meandros pelas serras encobertas de cana-de-açúcar do brejo da Paraíba. Primeiro, nos brindou com os sinais de “bem estar e riqueza no brejo de Areia”, em livro que deveria frequentar os bancos escolares. Agora, consegue encontrar resquícios de prazer na vida de pessoas que, ao invés de alegria, acumulam dor e sofrimento. Quase uma tese, a geração de riqueza e pobreza é mostrada com seus períodos de vitalidade e expansão, partindo do epicentro da fabricação do açúcar. Havia, desde então, uma tragédia anunciada: a pobreza escondida. Zélia aba ndona gráficos e estatísticas e prefere, como vivente, desde criança, do enredo e cenário animados pelos cambiteiros a conduzir a cana para os engenhos ou pelo barulho ensurdecedor das máquinas da usina, contar a história de gente que, como ela, cresceu sentindo o gosto do mel e o cheiro da cachaça. A rapadura fora trocada pelo açúcar, e isso mudaria a vida dos que dependiam da sua produção. Este trabalho pretende mostrar a pobreza de uma região onde a riqueza deveria prosperar: “existe uma miséria maior do que morrer de fome no deserto: é não ter o que comer na terra de Canaã”, já dissera o areiense-mor em A Bagaceira.
Tudo provinha da força das usinas: Tanques, em Alagoa Grande e, Santa Maria, em Areia. Absorveram os engenhos e transformaram seus Senhores em meros Fornecedores. O apogeu habitava a Casa Grande e, o eito, o barracão e os minguados ganhos ficavam para os trabalhadores. A desigualdade era palpável. Os esbanjamentos dos patrões enchiam os olhos marejados dos diaristas da terra, cheios de esperança. Como a esperança é a última que morre, as usinas também morreram, afogadas nas ações trabalhistas dos que resolveram reivindicar seus direitos e, na renascida alegria de uma sonhada reforma agrária. “Foi um período de esperança e prazer para os pobres”, diria Zélia. Interceptada pelos interesses maiores do agronegócio no Centro Oeste, restou ao Nordeste suportar a “dor da perda da reforma agraria, interceptada”.
Erigidas nas encostas, nas clareiras que a cana permitia abrir, surgiam os casebres onde vegetavam os sobreviventes dos tempos áureos da atividade fabril. Eram as testemunhas da pobreza. Ana, filha de escravos, sem ler ou escrever, valorizava o ouvido e contava histórias que encantavam a todos. “Presença de trabalho e prazer. Não era doce. Era real. Para que doçura se a vida é dura? Felicidade é prazer, não precisa de sorriso. Muito riso, pouco siso. ” O brejo era a sua vida. “Local de viver, produzir e trabalhar. Aqui foi criada. Criada com garapa de cana, rapadura e mel”. Quando falta emprego n o campo, muda-se para a cidade. Na cidade se faz bico e se vive de bico. Lava-se a roupa de um, passa-se a roupa de outro. Quando Ana passou a morar no acero da mata, tornou-se vigia daquele patrimônio da natureza. Ganhou importância. A tranquilidade do trabalho fez voltar seus instintos de fêmea. “Ana era uma beleza de mulher. A partir da melhoria de vida, passou a soltar-se mais com o marido. Muito prazer saia daqueles corpos”…
Sinhá Ninha tinha deixado o trabalho no campo. Era rezadeira e o povo agradecia as graças pedidas e alcançadas. Até os patrões a procuravam. Às escondidas. Ela merecia a confiança dos donos das terras. Ninguém conhecia sua origem nem procurava saber. Tinha uma filha de criação, Luzia. Sua única riqueza era a virgindade da filha. Até que um dia a filha, aos prantos, confessa que perdeu o seu tesouro. Sinhá Ninha apenas falou: – Vá se lavar com sabão!Foi em busca do ofensor. – Porque minha menina? – Eu queria ver sangue, respondeu o debochado. Dias depois, o sangue escorria pelo terreiro no malfeitor e ele estirado, sem vida. Contaram a Sinhá Ninha e ela apenas resmungou: – Ele queria ver sangue… Ele queria ver sangue… (Anotações em torno do livro: A dor da Pobreza e Resíduos de Riqueza no Brejo da Paraiba, da professora Zelia Almeida.
Sem Comentários