opinião

Tião Lucena

14 de julho de 2024

Gonzaga Rodrigues

Veio a insônia, talvez o receio de me entregar aos fundões da noite, e acendi a luz da varanda como a procurar companhia. Num cantinho ao lado da cadeira vegeta uma pilha de livros à espera de leitura. Entre eles – os demais que não se queixem – o Ulysses da professora Bernardina da Silveira, já que não fui adiante, por mais que se exigisse de um leitor de romances, o de James Joyce na tradução do grande Houaiss.

“Mas ainda não há de ser agora – reincidi. São dois grossos volumes a exigirem de mim uma disposição que a fronteira da idade não estimula. O de que mais preciso nesta hora deserta é de conversa livre, prosa cheia, animação. ”

E desliza da banqueta para minhas mãos,logo quem? Um Tião Lucena em espírito e mesmo em pessoa. Em pessoa inteira, ainda que impresso em letra de forma, feito escritor, ofício solitário que tem por único arrimo e companhia a palavra em si, no seu significado intrínseco, ainda isenta e livre das conveniências e intenções ou do caráter do usuário.

Tião escreve como conversa, se não no oficio de advogado ou de repórter, respeitando o padrão de um ou o manual de redação do outro, invariavelmente como cronista ou colunista sem peias. Com a vantagem ou ousadia de respeitar na conversa escrita a linguagem despregada do seu veio original pouco importando o calão de imediato efeito cômico.

Zé Cavalcante celebrizou-se ao verter para a escrita, com o mínimo de achegas do seu nível sociocultural, o riso solto e livre do povo que fervilhava nele. Do povo que o fez político. Tião raspa o tacho, localizando em sua Perdição, “uma cidade no mundo encantado do Sertão” o humor rolando do subsolo social, comum a toda uma região. Vem de tudo, sobretudo o tragicômico.

“Eles faziam festa, dançavam, cantavam, namoravam, não se preocupavam com tristezas, jamais se decepcionavam, no máximo sentiam saudades de alguém que, forçado pelas circunstâncias, tinha que partir para outros mundos. O reino encantado do Sertão se chamava Perdição”. Tem a parte lírica que abre o livro com a escolha do nome da localidade e aqui e ali enternece com amores como o de Xanduzinha. Da Princesa rebelde o escritor já havia tratado antes, capitaneada pelo coronel José Pereira, com quem fiz as pazes desde a leitura de uma crônica de Juarez Batista, que fiz incluir na antologia de autores paraibanos editada pela SEC de doutor Neroaldo em 2005.

Tratada agora como reino encantado, segue assim com seus doidos, seu seriado de mortes, adultérios, amores violentos, comédias e tragédias com personagens cujos nomes dizem tudo: Elvira Rasga Mortalha, Zé Gojoba, OntoimLambu, Rita Quarto de Bode, Gonzaga Cacimba, a maioria nesse diapasão. E chego ao capítulo dos engraçados descobrindo, sem sono, que a noite funda se foi não só pelos raios do sol que chega, mas por obra dessa aparição, em boa hora, do meu velho amigo Tião Lucena, uma dádiva das muitas que recebi de A União.

Transcrito de A União

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