Por Hilton Gouveia
Diferente da mulher com perfil submisso descrita e popularizada na letra do samba ‘Ai, Que Saudades da Amélia’, interpretado por Ataulfo Alves e composto por Mário Lago, uma outra Amélia, paraibana, é a protagonista de uma história real ocorrida em Campina Grande, no início do século passado. A Amélia da Paraíba não se deixou dominar e revidou a golpes de punhal os ataques de um ex-cangaceiro que a espancava.
Ela se chamava Amélia Mendes da Silva e, aos 28 anos de idade, envolveu-se em um episódio para defender a própria vida, em um fato policial ocorrido no início da noite do dia 5 de maio de 1915, no Beco dos Paus, em Campina Grande. Ela matou um ex-cangaceiro conhecido como Serrote.
Presa e submetida a júri popular, acabou absolvida por sete a zero e obtendo “grande” apoio da população “por ter livrado a sociedade de um monstro”. Isto aconteceu há 107 anos e ela foi considerada a primeira mulher (talvez a única) a matar um cangaceiro no Nordeste do Brasil. Saiu livre graças ao trabalho de um dos advogados mais hábeis e caros da época, Clementino Procópio, que patrocinou sua defesa.
Natural de Serraria, cidade do Brejo Paraibano e situada a 146 quilômetros de João Pessoa, após o crime ela passou a ser conhecida como “Amélia de Serrote”. Era uma menção ao apelido (nome de guerra) do cangaceiro que ela matou.O nome dele era José Maria de Oliveira, ex-cabra de Antônio Silvino, considerado homem “de maus bofes” e com fama de mercenário do mal, capaz de fazer qualquer coisa obscura por dinheiro. Perdeu a vida nas mãos de uma mulher criminalmente inocente, que passou a andar armada só depois que recebeu a ameaça de morte do cangaceiro.
Separada, mas dona de sua vida
Amélia foi casada com um agricultor chamado João Bento, homem de caráter e de natureza pacífica. “A separação desse casal deixou os vizinhos espantados: eles nunca ouviram sequer uma troca de insultos entre marido e mulher”, assim consta no processo de julgamento da paraibana.
É em meio ao período de franco crescimento de uma região então pobre, onde o dinheiro é presente e circulante, que a jovem Amélia, em 1915, ao deixar o marido, resolve instalar seu “próprio bordel”, onde só ela frequentava e recebia a clientela que escolhia. Em seu raciocínio, esse seria um modo decente de sobreviver, apelando para seus atributos sexuais, que os homens da época propalavam como atraentes. Deu tanto certo, que ela estava tocando a vida sem atropelos financeiros.
No Bordel de Amélia, ela era vista utilizando uma roupa com interessante bordado e exibia dois grandes colares de ouro em volta do pescoço. Só essa “pequena” ostentação apontaria claramente que Amélia não fazia seu trabalho em um prostíbulo comum.
A moça paraibana era “uma prostituta independente”, ou isolada, aparentemente sem ter a sombra de um cafetão para ditar regras; habitava na sua própria casa, escolhia com quem teria as suas relações sexuais; e quanto ganharia por cada programa. Desse modo poderia atender a um menor número de homens e, consequentemente, embolsar um melhor apurado. A higiene visualizada em seu bordel agradava aos clientes.
Administrava seu próprio bordel
Amélia Mendes criou uma maneira de evitar viver em bordéis comuns, enfrentando sérios problemas de higiene, onde as “inquilinas” pagavam taxas pesadas e se viam obrigadas a receber qualquer homem. Assim, essas mulheres tinham repouso mínimo e sempre eram exigidas pelas cafetinas. A alta rotatividade dos clientes facilitava a agressão dos covardes contra as prostitutas, muitas vezes praticada por homens inconformados com o desempenho sexual deles ou das eventuais companheiras de alcova.
Mesmo assim, o modo reservado como Amélia praticava a sua profissão não lhe isentava de sofrer violências. E foi isso que lhe aconteceu de forma contundente, em 1º de maio de 1915 (cinco dias antes da morte de Serrote), quando dois homens lhe aplicaram uma surra dentro de sua casa e lhe estupraram com extrema selvageria. Esse ataque bestial teria sido realizado, segundo comentaram seus algozes, a mando de um cliente enciumado.
Existe outra versão: o serviço foi patrocinado a mando de uma rica senhora da sociedade de Campina Grande, que percebeu a indiferença do marido após saber que ele frequentava a cama de Amélia, bem mais jovem do que ela e, profissionalmente, uma mestra na arte dos carinhos especiais. O problema para Amélia era que o comandante da dupla prometeu matá-la em outra ocasião, caso não abandonasse a cidade em 48 horas.
E o homem em questão não era alguém de promessas vazias. Ele havia sido um cangaceiro. Chamava-se José Maria de Oliveira (apelidado de Serrote) e fora expulso do bando de Antônio Silvino e da Polícia Militar, onde chegou ao posto de cabo. Nos dois locais em que passou, praticou desordens e condutas inadequadas. Cita-se que o cangaceiro Antônio Silvino, quando falava sobre Serrote, cuspia de lado e exclamava: “Aquela peste!”.
O popular Serrote teria nascido em algum local na Paraíba. Era conhecido por já ter praticado diversos crimes, inclusive assassinatos. Sempre agia com requintada malvadeza na região do interior do estado onde nasceu. Ele foi descrito pelos jornais da época como “tendo estatura regular, preto, cabelos carapinhos, olhos grandes, nariz chato, orelhas grandes, pés e mãos pequenas e dentadura perfeita”.
Outro jornal mostra que Serrote não havia deixado o bando de Silvino comandando um subgrupo. Na realidade, fora expulso pelo chefe, com mais outros cabras da sua laia. “Silvino era tido como ético, por não permitir estupros praticados por seu bando, nem exagero de qualidade nenhuma. “O capitão não confiava nessa gente”, diz o pesquisador e escritor Rostand Medeiros.
Caráter nocivo e perigoso
O ex-cangaceiro Serrote, que um dia se ombreou com Antônio Silvino, certamente encontrou em Campina Grande – com sua larga circulação monetária –, o lugar ideal para lhe proporcionar uma condição de atuar “com muito mais facilidade”, do que andar de arma na mão em meio à Caatinga. Além disso, seu caráter nocivo poderia ser sempre útil para servir abonados de baixo caráter. Ele errou em seus cálculos: com suas ideias maléficas acabou encontrando a morte pela mão de uma mulher.
A sua morte foi tão fácil quanto inesperada. Costumeiramente, Amélia saía de casa por volta das 17h e se dirigia a um hotel onde jantava. Na noite do crime, ao passar por uma viela escura, ela topou com Serrote, que foi logo lhe advertindo: “Você ainda está por aqui? Pera aí que eu já lhe ensino”.
Serrote retirou uma racha de lenha acumulada na calçada de uma padaria e partiu para cima de Amélia, acertando uma cacetada na cabeça. A mulher ficou tonta por uns segundos, mas aguentou o tranco, enfiou a mão entre os seios e sacou um punhal de aproximadamente 25 centímetros e o enterrou no coração do bandoleiro.
A perícia policial constatou no cadáver um pequeno buraco abaixo do peito esquerdo que, por ser pequeno, nem chegou a jorrar sangue. Mas foi o bastante para fazer Serrote cair por terra e “não falar mais nada”. O homem sequer teve tempo de sacar o revólver Smith & Wesson, calibre 38, que guardava na cintura. Depois da refrega, Amélia foi jantar normalmente e, ao contar o episódio aos frequentadores do hotel, de imediato obteve solidariedade. Respondeu ao processo em liberdade e acabou livre quando o corpo de jurados concedeu-lhe absolvição por sete a zero.
Matéria publicada originariamente em A União
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