Hildeberto Barbosa Filho
Tião Lucena escreve como quem proseia na calçada larga da vida, sem temer o que as palavras também contêm de desaforo, deboche e diabolismo.
Escrevendo sobre 30 (A guerra de Princesa: Recife, Bagaço, 2013), cai na besteira do parcialismo ou se deixa seduzir pela facilidade da caricatura, numa sintaxe perrepista insustentável, quer pelo anacronismo do olhar enraizado no mito do herói sertanejo, quer pela simplificação maniqueísta dos personagens e dos fenômenos históricos, em si mesmos complexos, precários e difusos como qualquer narrativa fragmentada da criatura humana.
Salva-o, dessa armadilha, o ritmo gostoso e depurado do estilo típico dos narradores orais que vêm desaparecendo ao longo do tempo, com seus casos e causos que nos enriquecem a memória e que nos atiçam o prazer da leitura.
Já na sua compartimentada autobiografia de jornalista (Nos tempos de jornal (João Pessoa: A União Editora, 2018), recortando sua trajetória de repórter e de sua prática variável com a palavra impressa, traz a percepção empática de certas experiências que o formaram e o construíram a partir dos bastidores do mundo do jornal. Com suas idiossincrasias, limitações, apelos e aberturas para o postulado dos fatos e das personas que movimentam o tecido da vida social.
Tião Lucena é solidário para com sua categoria e sabe resgatar o valor de personagens que, sem a sua intervenção verbal e memorialística, tombariam, indefesos, sob as duras paredes do esquecimento. Gente da redação, gente da política, gente do universo social, assim com os pequenos e grandes fatos que costuram o tecido da história se entrelaçam numa malha textual que cativa o leitor.
Sua narrativa, portanto, valendo-se da habilidade oriunda das lições da redação, daquele jeito de pôr os pontos nos iis e de não passar a mão na cabeça de ninguém, projeta, na sua textura prosaica, os elementos documentais de uma época e as singularidades de uma experiência individual cheia de peripécias e aprendizados.
Impossível começar a ler Tião Lucena, no seu traquejo enviesado e malicioso com os vocábulos, para não irmos em frente, naquele compasso do quero mais. De suas frases e orações, manejadas ao sabor de certa malandragem estilística, surgem tipos e situações que cheiram o inconfundível aroma das coisas da vida. O espectro histórico se desenha, palpável, nas miudezas do dia a dia, iluminando as suas circunstâncias, contradições e perplexidades.
Frutuoso Chaves, Chico Pinto, Wellington Fodinha, Enóquio Pelágio, José Euflávio, Gonzaga Rodrigues, Werneck Barreto, Abmael Morais e tantos outros, que inscreveram sua pauta na dialética absurda do nomear e dizer, do informar e formar, do pensar e refletir, saltam dessas páginas como figuras vivas e memoráveis no cotidiano da imprensa local. E Tião Lucena está, aqui e ali do texto, como o coro grego que pontua a trajetória de cada um, naquilo que cada um revela de permanente e essencial.
Humor, sarcasmo, ironia, leveza, empatia, e verdade perpassam a ordem dos parágrafos e dos capítulos numa cadência narrativa que nos sugere lições de história, de geografia, de ética, de política, de criatividade e de bom senso, sobretudo de bom senso, que nos liga ao miolo secreto das coisas da vida.
Tião Lucena, neste caso, recupera e enriquece uma pequenina, rica e rara tradição da prosa jornalística paraibana, naquilo que ela pode reunir de literário e de estético. Penso, aqui, em Severino Ramos, com suas Memórias de um repórter e, em especial, com A arca dos sonhos: Mocidade e outros heróis, e no delicioso Nos tempos do Pedro Américo, de Paulo Soares.
Antropologia e história, sociologia e psicologia social, filosofia do cotidiano e clínica do humano, além do traquejo da escrita jornalística, com sua mirada no instantâneo que se faz duradouro, estão presentes nas histórias de vida contadas por estes autores, como também nesta história que Tião Lucena nos conta, com tanta verve e sabor.
Sempre considerei o olhar jornalístico sobre as coisas tão indispensável quanto o olhar poético, filosófico e científico. Se na mesa dos debates, há um cientista, um filósofo e um poeta, é preciso um jornalista para completá-la. Se o poeta traz o intangível que se oculta na materialidade visível dos fenômenos vitais; se o filósofo traz a dúvida e as irrespondíveis questões diante do ser e do nada; se o cientista traz a prova a partir dos métodos experimentais, o jornalista traz o fato, suas evidências e seus mistérios, para somar, na edificação retórica e na lógica implacável dos discursos, a perpétua modulação da verdade.
Vejo assim este livro de Tião Lucena. Livro jornalístico sobre o jornalismo e sua história. Memória profissional e memória afetiva. Corografia da cidade, de seus amores, dores e dissabores. Descrição de sua boemia, documento de sua alma. Mas também a alma de um ser humano. De um jornalista do batente. Do escritor que veio das serras azuladas de Princesa, assim como um Aldo Lopes de Araújo, um Paulo Mariano e um Otavio Sitônio Pinto, para atender aos vocativos de uma épica da palavra.
2 Comentários
“De suas frases e orações, manejadas ao sabor de certa malandragem estilística, surgem tipos e situações que cheiram o inconfundível aroma das coisas da vida”. A meu ver, aqui está a síntese analítica do artigo de Hildeberto sobre o trabalho literário do imbucetável e maravilhoso Tião Lucena.
Tião Lucena, esse texto de Hildeberto Barbosa, dele se poderia dizer que escrito com alma e raro talento. Há dificuldade, pelo primor de todos, no selecionar um parágrafo para destaque.
Ouso destacar dois que se completam:
“Sempre considerei o olhar jornalístico sobre as coisas tão indispensável quanto o olhar poético, filosófico e científico. Se na mesa dos debates, há um cientista, um filósofo e um poeta, é preciso um jornalista para completá-la. Se o poeta traz o intangível que se oculta na materialidade visível dos fenômenos vitais; se o filósofo traz a dúvida e as irrespondíveis questões diante do ser e do nada; se o cientista traz a prova a partir dos métodos experimentais, o jornalista traz o fato, suas evidências e seus mistérios, para somar, na edificação retórica e na lógica implacável dos discursos, a perpétua modulação da verdade.
Vejo assim este livro de Tião Lucena. Livro jornalístico sobre o jornalismo e sua história. Memória profissional e memória afetiva. Corografia da cidade, de seus amores, dores e dissabores. Descrição de sua boemia, documento de sua alma. Mas também a alma de um ser humano. De um jornalista do batente. Do escritor que veio das serras azuladas de Princesa, assim como um Aldo Lopes de Araújo, um Paulo Mariano e um Otavio Sitônio Pinto, para atender aos vocativos de uma épica da palavra.”
Mas o primor não existiria, se o seu atuar como jornalista não o merecesse como causa primeira.
Tarcízio Fernandes
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