opinião

A cavalgada da fazenda Pau d’Arco

15 de julho de 2022

 

 

Por Aldo Lopes de Araújo

De imediato a emoção me jogou longe, me empurrou para o centro de um reino encantado nos confins da Paraíba. Consulto meu astrolábio moderno e vejo que estou na fazenda Pau d’Arco, Brejo do Cruz, no meio do tempo e de uma fuzarca de vaqueiros de fazer medo, uma profusão de cavalos, bois e homens, e muita festa. E já que estou aqui, daqui não saio sem dar meu testemunho desse grande acontecimento materializado pelo Sr. Odilon Maia e sua esposa Geyseane.

A festa é um presente para os olhos da nova geração órfã de uma cultura de raiz hoje em vias de extinção. Manifestações desse naipe andam aceleradas rumo ao esquecimento. E deram os primeiros sinais quando a roda da motocicleta substituiu os cascos do cavalo, quando o gado passou a ser transportado em caminhões. Como se não bastasse, caçaram o aboio do vaqueiro, o baião, a viola e o cantador. Agora só se escuta o baticum, a zueira citadina do gueto, os ecos do paredão. Regredimos aos tambores primitivos do Neandertal.

Todos os anos, o casal abre as porteiras da fazenda, escancara os umbrais da própria casa — e até dos corações — para receber esses heróis que ajudaram a construir o Brasil Setentrional em parceria com seus cavalos. É a festa da resistência, e a fazenda de Odilon é o vestígio dessa última fronteira. Ele tem a sabença dos seus avoengos, estes que fizeram voar laços pelos ares, estes que viveram por séculos no desembesto de pegar o boi pelo rabo. Boi, cavalo e homem num só plano de voo cujo objetivo era o animal no chão, subjugado. E assim foi criada a riqueza, a História desse lugar.

Brilham os arreios de prata, as fivelas e os loros dourados fazem poses de ouro, e os couros azeitados são o sofrimento dos touros, dos que morreram nos matadouros. Desses couros se vestem os vaqueiros, grife reinante nessa festa de confraternização que conta todos os anos com bênçãos do Sumo Pontífice, nas palavras do padre oficiante da missa do vaqueiro. A cruz maltina das naus do descobrimento aparece em montículos de pedras nas beiras de estradas. Ela também está presente no pátio da fazenda Pau d’Arco para abençoar Odilon, a esposa, a vaqueirama e os bichos.

Todos em silêncio, um silêncio contrito de cavalos e homens num só corpo, como se fossem centauros de couro. Eles agora escutam emocionados os mantras do Galego Aboiador, em meio à distribuição de troféus, camisetas, bonés, bottons, comidas, bebidas, abraços e a certeza de que “valeu a pena investir naquilo que temos de mais genuíno, que são os saberes e as tradições do nosso povo, desse povo que a duras penas costurou nossa História desde os tempos da colonização”, destacou Odilon em discurso de agradecimento.

O cheiro do churrasco nos ares azeitava a fome. O galego Aboiador deu uma pausa em sua verve, precisava desocupar a boca, confiscar o espeto com a picanha fumegante que passava diante dele em direção à mesa grande. Nesse intervalo, um bode invadiu o pátio. Com seus chifres de guerreiro viking, ele acabou atrapalhando a festa, mas virou mote e narrativa na cantoria do Galego. Candidato a virar churrasco, a investidura do bodão no cargo de pai-de-chiqueiro foi o que o lhe salvou. Era tido já há alguns anos como o Roberto Carlos das cabras.

Por todos os lugares, os metais dos arreios faíscam ao sol em meio aos festejos e à canícula do Sertão, este calor que é mais tarde atenuado pelo Aracati. Como uma bênção, o Aracati assopra e penteia o capim maduro das planícies, consagrando a vocação desse pedaço de mundo para a atividade pastoril, isso desde quando os pioneiros derrotaram os índios na grande guerra dos bárbaros. Assim, entonados em seus gibões, como se fossem centauros de couro, os vaqueiros se agigantam vestidos nessas armaduras, como se cavalo e homem fossem um animal só, ente mitológico que veio a galope de lá do fundo dos séculos para festejar esse dia de confraternização na fazenda Pau d’Arco.

 

 

Aldo Lopes de Araújo

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3 Comentários

  • Reply JOSÉ VENTURA FILHO 17 de julho de 2022 at 08:59

    Caro Aldo,

    Parabéns pela sua narrativa extraordinária!

    Como é bom retornar às nossas origens, onde a natureza, mesmo tanto sacrificada, torna-se suave com o seu jeito suave de escrever e descrever, fielmente, a simplicidade estampada dos vaqueiros, vestida em seus gibões verdadeiros. Só você soube expressar tamanha exatidão daquele momento… Desde que te vi, pela década de 80, em sua casa, lá no Conjunto dos Professores- Bancários, que sabia que ali, por aqueles dedos, certeiros, em uma máquina simples de datilografia, iam sair maravilhas de escritos ao alcance dos nossos olhares agradecidos e saudosos.
    Para te agradecer, segue este poema abaixo, também, construído em 1980, aqui nos Bancários-João Pessoa-PB.

    VACA, CAVALO E VAQUEIRO

    /Arriou o seu cavalo/
    /Na fazenda “Limoeiro”/
    /Foi tangendo as novilhas/
    /Como mostra um bom vaqueiro./

    /Mas a vaca “lua branca”/
    /Das mais brabas se enraivou/
    /Correu lá pros tabuleiros/
    /E nem ao menos lhe esperou/

    /Teve que pegar “melado”/
    /Nas esporas lhe cravar/
    /Pra trazer a “lua branca”/
    /E no rebanho se ajuntar/

    /Mas as coisas não deram pé/
    /Quando estava no mais perto/
    /Num serrote bem coberto/
    /Seu “melado” cai sem fé./

    /Ele ficou desesperado/
    /Sem saber o que fazer/
    /Sem a sua “lua branca”/
    /Sem “melado” pra correr/

    /Sem caminho pra voltar,/
    /Sem vontade pra viver,/
    /Sem força pra poder andar,/
    /Só vaqueiro a sofrer/

    /Só queria nessa hora/
    /Ver “melado” se levantar,/
    /Ver a sua “lua branca”/
    /Esperando pra voltar/

    /Mas vaqueiro e sonhar/
    /São duas coisas diferentes,/
    /Vaqueiro sabe aboiar,/
    /Sonhar não sabe a gente/

    /Vaqueiro, vaca e cavalo/
    /Vaca, cavalo e vaqueiro/
    /Cavalo, vaqueiro e vaca/
    /São três coisas do tabuleiro./

    /Foi por isso que se deu/
    /Vaca, cavalo e vaqueiro/
    /Foram feitos pra morrerem/
    /Lá dentro do tabuleiro./

    /Adeus cavalo “melado”,/
    /Adeus valente vaqueiro,/
    /Adeus vaca “lua branca”,/
    /Adeus velho tabuleiro./

    João Pessoa, 11/12/80

    José Ventura Filho

  • Reply JOSÉ VENTURA FILHO 17 de julho de 2022 at 09:01

    Caro Aldo,

    Parabéns pela sua narrativa extraordinária!

    Como é bom retornar às nossas origens, onde a natureza, mesmo tanto sacrificada, torna-se suave com o seu jeito de escrever e descrever, fielmente, a simplicidade estampada dos vaqueiros, vestida em seus gibões verdadeiros. Só você soube expressar tamanha exatidão daquele momento… Desde que te vi, pela década de 80, em sua casa, lá no Conjunto dos Professores- Bancários, que sabia que ali, por aqueles dedos em uma máquina simples de datilografia, iam sair maravilhas de escritos ao alcance dos nossos olhares agradecidos e saudosos.
    Para te agradecer, segue este poema abaixo, também, construído em 1980, aqui nos Bancários-João Pessoa-PB.

    VACA, CAVALO E VAQUEIRO

    /Arriou o seu cavalo/
    /Na fazenda “Limoeiro”/
    /Foi tangendo as novilhas/
    /Como mostra um bom vaqueiro./

    /Mas a vaca “lua branca”/
    /Das mais brabas se enraivou/
    /Correu lá pros tabuleiros/
    /E nem ao menos lhe esperou/

    /Teve que pegar “melado”/
    /Nas esporas lhe cravar/
    /Pra trazer a “lua branca”/
    /E no rebanho se ajuntar/

    /Mas as coisas não deram pé/
    /Quando estava no mais perto/
    /Num serrote bem coberto/
    /Seu “melado” cai sem fé./

    /Ele ficou desesperado/
    /Sem saber o que fazer/
    /Sem a sua “lua branca”/
    /Sem “melado” pra correr/

    /Sem caminho pra voltar,/
    /Sem vontade pra viver,/
    /Sem força pra poder andar,/
    /Só vaqueiro a sofrer/

    /Só queria nessa hora/
    /Ver “melado” se levantar,/
    /Ver a sua “lua branca”/
    /Esperando pra voltar/

    /Mas vaqueiro e sonhar/
    /São duas coisas diferentes,/
    /Vaqueiro sabe aboiar,/
    /Sonhar não sabe a gente/

    /Vaqueiro, vaca e cavalo/
    /Vaca, cavalo e vaqueiro/
    /Cavalo, vaqueiro e vaca/
    /São três coisas do tabuleiro./

    /Foi por isso que se deu/
    /Vaca, cavalo e vaqueiro/
    /Foram feitos pra morrerem/
    /Lá dentro do tabuleiro./

    /Adeus cavalo “melado”,/
    /Adeus valente vaqueiro,/
    /Adeus vaca “lua branca”,/
    /Adeus velho tabuleiro./

    João Pessoa, 11/12/80

    José Ventura Filho

  • Reply Aldo Lopes de Araújo 17 de julho de 2022 at 14:24

    Tive a ventura de receber um poema, de receber esse agradecimento em pleno domingo. Também tive a ventura de saber o quanto é poderosa a memória de um ser humano: ir buscar nas brumas da década de 80 a lembrança do Conjunto dos Bancários e da velha máquina Olivetti, dinossauro de tempos imemoriais. Sei que nos cruzamos um dia, amigo velho. A esquina e o tempo você próprio os delimitou. São passados 40 anos. O alzheimer ainda não chegou, tampouco o espero. Eu quero é que ele se foda. Prefiro a lembrança, o galope da saudade batendo os cascos no chão, a vaqueirama do teu poema, os aboios, a tua tocante recordação. Os teus cavalos e os teus vaqueiros certamente não são os mesmos, como os mesmos não são os nossos sonhos, matéria da qual todo homem é feito, como diria Shakespeare. E agora, José?

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